segunda-feira, julho 24, 2006

As damas de ferro e os soldadinhos de chumbo


Um, dois, três, pelotão, marche. Sentido! Tremendo, os soldadinhos de chumbo batem continência para a dama-de-ferro que chega.
Altiva, prepotente, autoritária, a dama-de-ferro amedronta até o mais destemido soldado. Seu exército é formado por soldadinhos de chumbo, robozinhos, marionetes que ela manipula impiedosamente enquanto alimenta sua insaciável vaidade.
Ao contrário do que o leitor pode estar pensando, não estamos falando de um campo de concentração. Nosso cenário é uma entidade ligada ao Poder Judiciário, onde ocorre um crime terrível: o vampirismo, onde damas-de-ferro de costas-quentes sugam toda a energia vital dos simples mortais, que são obrigados a aturá-las para sustentarem suas famílias.
Para ganhar o pão nosso de cada dia, o simples mortal tem que perder a dignidade. É um pão suado, doído, que engasga, dá azia e custa muito caro.
Como se não bastasse a dama-de-ferro-mor, o exército dos soldadinhos de chumbo ainda tem que aturar as “damas-de-ferro auxiliares”. Juntas, elas tecem uma teia de vaidade e ignorância.
Esparramando terrorismo por onde passam, as damas-de-ferro são juízes implacáveis: condenam impiedosamente. Neste tribunal de horrores, o réu não tem direito a defesa, nem apelação e somente deve ficar inerte aguardando a promulgação da sua pena de morte, mesmo que não tenha cometido nenhum crime.
Piores que os Cavaleiros do Apocalipse, as damas-de-ferro cultuam a morte das idéias, e são contra qualquer tipo de manifestação do pensamento que não tenha partido delas mesmas.
Um dia, um destemido soldado ousou enfrentá-las e usou o armamento mais pesado que existe: suas idéias libertárias. Unidas, as damas-de-ferro conseguiram derrotar o soldado. Além de possuírem veneno letal, elas ainda pertenciam a famílias nobres, invencíveis na República do Nepotismo.
O soldado rebelde foi fuzilado, mas deixou a semente da liberdade plantada no batalhão. Todos continuam dizendo “amém” para as damas-de-ferro, porque precisam sustentar suas famílias, mesmo que isto lhes cause gastrite, insônia, depressão e enxaqueca. Mas agora os soldadinhos de chumbo já sabem que existe esperança e lutam para que seus filhos tenham um futuro melhor.
Quanto às damas-de-ferro, vão acabar seus dias enferrujadas com o próprio veneno da mediocridade e um dia hão de prestar contas das suas maldades no Tribunal Divino, onde sobrenome não tem importância e todos são iguais perante a Lei de Deus.

Uma noite na fila da esperança

Maria José Sá

Mais de dez mil pessoas passaram pela fila formada no Ginásio de Esportes de Campinas, nos últimos dias, na esperança de conseguir um emprego no Carrefour Cascavel, que oferece 480 vagas. Passei a madrugada de ontem nessa fila, onde ouvi histórias e tive oportunidade de compartilhar as angústias, incertezas e principalmente a esperança de centenas de brasileiros desempregados e desesperados. Tinha de tudo, desde quem chegou em carro importado e esnobou todo mundo, até quem veio de outros municípios com o dinheiro da passagem contado, sem agasalho e sem alimento, mas com vontade de trabalhar.

O primeiro da fila era o tapeceiro desempregado João Batista Nunes, 44. Ele mora no Setor Garavelo, em Aparecida de Goiânia, e chegou às 16h30 para guardar o lugar do filho de 20 anos, que cursa o 2º grau e chegou na manhã seguinte. João está desempregado há mais de 1 ano e o filho, há oito meses. Sua esposa não trabalha e eles têm mais um filho, de 10 anos. João diz que a família vive de bicos. “Eu e meu filho mais velho capinamos lotes, fazemos serviço de chapa, de eletricista e de encanador. Vamos nos virando como podemos, um dia tem serviço, noutro não.” Franzino, João passou a noite deitado em papelões com uma garrafa de água e um saco de pipocas “para quando a fome apertar”.

Tentando a sorte
A maranhense Andréia Oliveira, 22, é técnica em edificações, está desempregada há três meses e veio tentar a sorte em Goiânia, onde tem apenas uma amiga. “Saí de Imperatriz com a cara e a coragem. Aqui estou trabalhando numa banca de roupas e comida na Feira Hippie, onde ganho mais ou menos R$ 100 por semana. Estou me inscrevendo para operador de caixa. Parece que o salário é de R$ 410. Se conseguir, quero continuar na feira aos domingos.”

Na fila do Carrefour a maranhense conheceu seu segundo amigo goiano, Weber Gomes Ferreira, 21. Ele mora no Bairro Capuava, tem o 2º grau e é vendedor em uma papelaria, onde ganha R$ 360 mensais. O rapaz se inscreveu para o cargo de repositor e não sabe qual é o salário, mas acredita que seja um pouco mais do que ganha atualmente.
Em busca de vida melhor
A auxiliar de enfermagem Silvoneide Pereira de Britto, 31, que também passou a noite ontem na fila do Carrefour, deixou o trabalho de agente comunitária no Programa Saúde da Família (PSF) em Aparecida de Goiânia, onde mora, para procurar algo melhor. “Eu trabalhava oito horas por dia, ganhava um salário mínimo e não tinha tempo para procurar outra coisa. Meu marido é gari, tenho três filhos pequenos e vou me inscrever para qualquer coisa. Preciso de emprego com urgência.”

Marcos Roberto de Souza, 23, já trabalhou no CPD de outro grande supermercado, onde ganhava R$ 240 por mês. “Estou desempregado há dois meses, vou me inscrever para qualquer coisa.” Cristian Rodrigues Alves, 24, é professor de axé e dança de salão numa academia em Goianira, onde mora, e ganha menos de R$ 400. Ele veio de ônibus e também não sabe para o que vai se inscrever. “Qualquer coisa serve. O que tocar, estou dançando.” Maria de Lurdes Nascimento, 42, mora em Trindade e pegou três ônibus. Ela era auxiliar de escritório, tem um filho de 4 anos e está desempregada há três anos. O marido é repositor e ganha R$ 400. Ela se desespera e desabafa: “Só vim para não dizerem que não tentei”.

O calor humano aumenta à medida em que a temperatura cai. Embrulhados num cobertor e encolhidos sobre pedaços de isopor, Elisângela Pereira da Silva, 26, e o marido, Anderson Clayton Santana, 28, passaram a noite abraçados e planejando um futuro melhor para o filho de 3 anos. Ele é professor pró-labore numa escola do Jardim Curitiba e veio fazer companhia à esposa, que está desempregada.

Solidariedade aparece no frio da madrugada

É quase meia-noite na fila por emprego no Carrefour. O frio vai chegando, a noite vai passando e o povo se acomodando em colchonetes, jornais e papelões. A cada segundo aparecem mais candidatos. Alguns de carro, outros nos últimos ônibus, de bicicleta ou a pé. Todos na mesma situação, e o grupo acaba desenvolvendo uma harmonia impressionante.

Os “vizinhos de vaga” logo começam a dialogar. Os assuntos são variados. Alguém liga um radinho de pilha e os torcedores do Goiás se juntam para ouvir o final do jogo com o Corinthians. Não tinha banheiro disponível por perto, mas a galera não se apertou, deixou a vergonha de lado e literalmente “molhou as árvores” e os cantos escuros dos muros...

Começam a madrugada e as demonstrações de solidariedade. A maioria se acomoda no chão e quem tem cobertores sobrando agasalha quem não tem. O lanche também é dividido e o papo corre solto no friozinho. Um grupo animado se diverte jogando caixeta. O prevenido Wellington Rodrigues, 20, candidato ao cargo de repositor e desempregado há dois meses, levou o baralho na certeza de encontrar “uma turma legal”. Em poucos minutos, o grupo estava formado.

Duas mulheres surgem com um colchão de casal, cobertores, travesseiros e três crianças. Tratam-se de Vanessa Ferreira, 21, e sua torcida, formada pela tia e os primos de 7, 9 e 11 anos respectivamente, que vieram dar apoio moral. Para as crianças tudo é festa, mas Vanessa é técnica de informática e saiu do emprego há dois anos quando teve sua filha. “Pedi demissão para cuidar do bebê e agora não consigo reingressar no mercado.

Solidário, o estudante de Artes Cênicas da UFG Cleodon Neto, 25, surge com uma garrafa de café e copos de plástico. Ele é vizinho do ginásio e também está na fila. Uma cabeça branca se destaca na multidão. É o aposentado Domingos Alves Castro, 72. Ele mora no Goiânia 2 e veio segurar lugar para o neto Dérik, 21, que é técnico de computação e está desempregado. Com pouco agasalho, quando o frio aperta, Domingos demonstra cansaço em sua face, enquanto o neto dorme em casa.
Cada candidato trazia o brilho da esperança no olhar. Naquela noite gelada a maioria era de gente humilde. E um verso de Chico Buarque me vem à cabeça: “Que vontade de chorar”.
* Matéria publicada no Diário da Manhã em 18/7/2003 - Economia
Logo após a publicação desta matéria, a rede de supermercados Carrefour decidiu receber currículos para seleção pelo correio, sendo que somente seriam chamados para entrevista os currículos pré-selecionados, evitando assim, a formação de filas para inscrição ao processo seletivo.

O escultor de Deus


Maria José Sá

Para quem procura a paz, o local indicado para um passeio é o Mosteiro da Anunciação do Senhor, na Cidade de Goiás. É difícil descrever esse lugar onde a beleza está justamente na simplicidade e no contato com a natureza. O leitor tem que ir até lá e sentir a paz invadindo o coração. Construído pelos monges beneditinos, tudo no mosteiro faz alusão à união das raças branca, negra e indígena.

Um dos responsáveis pela belíssima arquitetura da obra é o monge francês Pedro Recroix, 80, semi-eremita. Ele é escultor de madeira e seus trabalhos são conhecidos mundialmente. A capela do mosteiro é aberta à comunidade, que pode assistir missa aos domingos, às 9h, e às terças e sextas-feiras, às 19h. Os monges cuidaram dos mínimos detalhes da composição do ambiente.

Tudo na capela tem um profundo significado que o artista explica pacientemente aos curiosos visitantes. “A bandeira colorida representa todos os países da América Latina pedindo paz. O Cristo estilizado vivo, de mãos grandes e inclinadas para a terra, significa os operários. A Menorah representa a parte mais reservada dos templos de Jerusalém, onde os sacerdotes oferecem seu sacrifício diário, é uma alusão ao Judaísmo. Não podemos nos esquecer que Jesus era judeu”.

O altar de madeira maciça entalhada tem desenhos das culturas inca, maia e asteca. Tramas com motivos orientais, em madeira, representam as antigas religiões do Oriente. Na capela reservada aos monges, Pedro esculpiu um Cristo liberto, voando para o alto. “Esta capela é menor, e a utilizamos para as orações individuais. Por isso criamos este ambiente mais aconchegante, que promove a intimidade com Deus”. Outros monges artistas, como o Irmão Celso, também contribuíram para a decoração com velas ornamentadas e peças de argila e ferro.

Irmão Pedro trabalha com diversos tipos de madeira. “Cada uma tem sua personalidade, mas as duras são melhores para esculpir.” O escultor aproveita o próprio desenho da madeira para compor a trama. Seus trabalhos são comercializados e a renda é destinada para ajudar na manutenção do mosteiro. Embora ele afirme que não sabe dar preço às suas peças. “Pôr preço numa obra de arte é prostituir a arte.” Ele ensina seu ofício para alguns adolescentes vizinhos. “Só exijo que se comportem, tenham juízo e gostem de trabalhar com a madeira.”

“Ora et labora, trabalho e oração. Este é o nosso lema e é o que ensino aos jovens.”

Daiane Ferreira de Aguiar, 12, estuda pela manhã e à tarde aprende a esculpir madeira. “Estou com ele há seis meses. Já sei fazer nomes e copiar desenhos. Até já vendi dois quadrinhos que fiz. Estou adorando e quero aprender o máximo com o Irmão Pedro. Decidi que quando crescer, quero viver de esculturas de madeira. É muito bom ver o trabalho da gente pronto.”

Gilmar Ferreira, 20, também é escultor. O rapaz é de Ceres e está no mosteiro há dois anos. Ele é o braço direito de Irmão Pedro, de quem é aluno. “Eu estudo Teologia e aprendi a esculpir madeira. Quero ser monge. Aqui no mosteiro o aprendizado é muito grande, tanto de vida quanto de arte.”

Comunhão ecumênica
No site www.empaz.org, o prior do Mosteiro, Marcelo Barros, explica a comunhão com as outras religiões, adotada pelos Beneditinos:

“Não obstante a extraordinária beleza e o potencial de induzir a pleno estado de oração, que esta antiquíssima maneira de rezar tem propiciado ao longo dos séculos, cuja guarda tem sido carinhosamente preservada na tradição de nossa Ordem, a comunidade do Mosteiro da Anunciação assumiu buscar, pesquisar e ampliar formas inculturadas de liturgia, que facilitem a evangelização das comunidades entre as quais nos inserimos, sem prejuízo da beleza, harmonia e simplicidade do Louvor a Deus.

Procuramos estar sempre em sintonia com a tradição da Igreja e também com a cultura popular. Buscamos, portanto, uma liturgia que seja expressão da vida que vivemos, no bairro onde moramos. A Comunidade procura participar em atividades e eventos que consagrem sua presença libertadora no universo das culturas, numa atitude de reverência, diálogo e aprendizado com o diferente, reconhecendo, humildemente, que muitas vezes Deus também se revela naqueles que não são iguais a nós.

O Ecumenismo e o Macro Ecumenismo constituem, portanto, opções fundamentais da comunidade do Mosteiro da Anunciação do Senhor, e são uma das características mais marcantes do estilo monástico ali vivenciado. Na segunda-feira, rezamos em comunhão com o budismo e o hinduísmo; na terça, com as tradições afro-brasileiras; na quarta, com todas as pessoas que buscam o divino nos mais diversos caminhos não-institucionais; na quinta, com as tradições indígenas; na sexta, com o islamismo; no sábado, com o judaísmo, e no domingo fazemos coro com todas as igrejas cristãs.

O Ofício do Meio-Dia é dedicado à comunhão com as grandes tradições religiosas do mundo, onde pedimos a graça da comunhão e do diálogo. A leitura deste ofício é sempre tirada de algum texto sagrado de outras tradições espirituais ou documento explicativo. Muitas celebrações do mosteiro dão-se portanto a nível ecumênico e macroecumênico, tanto no espaço de nossa vizinhança, com as Igrejas Evangélicas irmãs, quanto no âmbito nacional e regional. Sempre que possível estamos presentes em atos, eventos e congressos pertinentes ao diálogo inter- religioso, em particular a Assembléia do Povo de Deus - APD, que anualmente temos acolhido em nosso Mosteiro.

Nossos irmãos têm participado de manifestações autênticas da cultura e religiosidade populares, como a tradicional peregrinação do povo goiano ao Santuário de Trindade, caminhando a pé dezenas de quilômetros pelas estradas do interior, durante dias, a cavalo ou de carro-de-boi. As folias folclóricas e de fundo religioso popular também são acolhidas no Mosteiro, em respeito aos fazeres populares e suas formas peculiares de louvar a Deus.”
* Matéria publicada no jornal Diário da Manhã em 2/4/2003

As ‘meninas’ da balada





Não há quem não solte boas gargalhadas quando tem uma drag queen por perto. Sem elas, a noite não seria a mesma. Agora, imagine um bando delas dançando quadrilha, com roupas típicas, noiva e tudo mais. Até São João se divertiu... Para estes artistas, tudo é festa. “A gente anima até velório”, diz Tyna Brazil, 23. Ao contrário do que muitos imaginam, as drag queens não são travestis. São palhaços caracterizados de mulher. São homossexuais, mas não se prostituem e têm parceiros fixos, como fazem questão de ressaltar.

Nas boates, as drags cantam, dançam e fazem o correio elegante, que funciona assim: quando uma pessoa gosta de outra que não conhece, manda um bilhetinho, que a drag entrega de maneira descontraída, promovendo o encontro. A empresária Regina Perri, proprietária da boate gay Jump, conta que o público adora as drags. “Elas animam as pessoas, brincam e têm fãs de carteirinha, embora o cliente normal prefira um ambiente mais intimista.”

Animação – Roberto Silva, habitué de boates gays, diz que gosta da animação dos artistas. “Só que quando acontece em excesso, atrapalha um pouco. Em outros Estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, as drags têm um repertório maior de brincadeiras e as piadas são mais inteligentes.”

A maioria das drag queens goianas tem formação teatral e faz parte do famoso show Ju Onze 24. Durante o dia, elas se vestem normalmente como homens, e trabalham. Alguns assumem a condição sexual, mas a maioria esconde da família. Conversamos com várias drags durante a festa junina na boate Jump, na madrugada do último domingo.
Eles dizem que têm a aura cor-de-rosa
“Sou homem, mas tenho a aura cor-de-rosa.” Assim se define Fryda Bomba, 23, 1,90m de altura. Durante o dia, ele trabalha como decorador e há dois anos faz parte do elenco do humorístico Ju Onze 24. Entretanto, Fryda não revela sua identidade, assim como a maioria das suas colegas. “Não quero expor minha família”, justifica. Tyna Brazil, 23, é drag há sete anos e a única desse grupo que assume a verdadeira identidade. “Também sou bailarino e faço o show do Ju há oito anos.” Durante o dia, Tyna se chama Anderson e trabalha como cabeleireiro e maquiador, e diz que gosta de animar a balada.

As drag queens ganham cachês (que não revelam o valor) para animar festas, boates, chás de panela, feiras de cosméticos e despedidas de solteiro. Samara Morgans, 22, é gerente administrativo de uma grande empresa. “Ninguém sabe que sou drag. Durante o dia, sou um homem normal. Eu freqüento boates gays há algum tempo e achava as drags interessantes. Trabalho num ambiente muito sério e aquela farra me animava. Para fugir do stress, resolvi explorar minha veia cômica, conversei com as meninas e resolvi ser drag. Estou feliz e me divirto muito.”

Alexya Rignatta, 22, conta que demora duas horas para se maquiar. “A pior parte é colar o cílio postiço.” Maquiagem e perucas extravagantes são fundamentais na composição do visual, assim como perfumes marcantes. Debochadas, elas contam que drag queen é uma personagem que não tem sexo. “Exploramos o lado cômico e não o sexual. O público jamais verá uma drag beijando na boca.”

Durante o dia, Yrana Smith, 22, é técnica de enfermagem em um grande hospital. “Minha mãe sabe que sou drag e acha legal. Ela até guarda fotos de shows. No meu trabalho, sou sério e muito profissional. Mas ser sério cansa, então resolvi ser drag queen para ser bonita.” Aryel Montila, 19, é cabeleireiro e virou drag há seis meses. “Minha família sabe por alto, mas finge que não sabe e prefere não comentar.”

A situação mais complicada é de Mary Kane, 21, drag queen há um ano. “Sou de uma pequena e conservadora cidade do interior. Meu pai é caminhoneiro, supermachista e ignorante, se souber que sou homossexual, e ainda drag queen, não tenho dúvidas de que ele me mata.” Mary estuda enfermagem e teatro, e garante que sua família jamais descobrirá sua condição. “Recebi uma educação muito rígida.”

Xantara, 33, é drag há nove anos e trabalha como cabeleireiro e maquiador. “Sou muito assediado e os homens confundem drag queen com travesti. Temos de deixar claro que não fazemos programa.” O estudante Leandro é freqüentador de boates gays e adora as drag queens. “Elas são tudo de bom. São o chamativo da boate. São animadas e divertidas, boate gay tem que ter a alegria e o colorido das drag queens.” (Maria José Sá)

Vocabulário gay

Babado: serve para quase tudo. Sexo, drogas, encontros, comida, música, conversa. Vale também para a célebre pergunta “Qual é o babado?”, no sentido de o que está acontecendo?

Barbie: corpo de Tarzan, cabeça de Chita. Gay bastante sarado, com corpo ultratrabalhado

Basfond (leia-se báfon): bagunça, confusão, baixaria, bochincho, barra pesada

BF: Bicha Fina ou Bolacha Fina. Homossexuais com mais de 30 anos, com dinheiro, chiques e freqüentadores de bons ambientes

Biba: homossexual masculino ou feminino

Bofe: homem másculo

Bofescândalo: homem gostoso

Bolacha: nome meigo para sapatão

Cascaboi: usada por gays mais velhos, designa aquele ser meio carrancudo, chato

Caso:
namorado

Armário:
enrustido. Sair do armário: se assumir

Sandália: a mulher da caminhoneira

Sapa, Sapata: diminutivo de sapatão

Caminhoneira: lésbica bem masculina

Drag queen:
homem que se veste com roupas geralmente associadas ao sexo feminino, mas sem esconder que é homem, também associado a maior espalhafato

Drag king:
versão feminina de Drag Queen, mulher que se veste de homem

Elza: roubo; dar a Elza: roubar

Susie: aquele rapaz que malha bastante, tem o corpo legal, mas não é grandão, bombado, não é barbie ainda

Entendido/a: gay/lésbica

Fechar:
fazer sucesso

Lady: lésbica de aspecto feminino

Luxuosa: expressão de aprovação para alguém bem produzido, bonito

Meda: feminino de medo. Usado como interjeição para algo que não é agradável

Me erra!:
me larga

Naja: fofoqueira, intrigueira

Sarado: malhado, marombado, com bom corpo

Sapatão: lésbica de aspecto masculino

Bagaceira: de baixo nível
* Matéria publicada no Diário da Manhã - DM Revista de 19/6/2003

A beleza do rio que corre na nossa aldeia



Maria José Sá

Neste final de semana foi encenada em Goiânia uma obra-prima da dramaturgia brasileira, Rasga Coração – o último texto do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho. Com o apoio da Brasil Telecom e do Projeto Goyazes - da Agepel, os ingressos custaram apenas R$ 10,00 e ainda tinha meia para estudante, R$ 5,00 - muito menos do que se gasta com espetinhos e cerveja em qualquer boteco da periferia que vive lotado...

A Cia. Teatral Martim Cererê, “goiana do pé rachado”, coleciona diversos prêmios ao longo da sua trajetória. As poucas pessoas que assistiram ao espetáculo puderam, mais uma vez, comprovar o talento da nossa prata da casa.

Quando entrevistei o ator Edwin Luisi, do elenco de A pulga atrás da orelha, comentei que a companhia de Marcos Fayad estava em cartaz com Rasga Coração, e o ator carioca exclamou: “Rasga Coração, do Vianinha? Então ninguém vai ver a minha peça!” Nota-se que ele não conhece este Goiás, que não valoriza seus artistas.

A trupe goiana estreou na sexta-feira, concorrendo com o show do Paralamas do Sucesso, e no sábado tinha A pulga atrás da orelha (uma dessas comédias caça-níqueis, cujo ingresso custava R$ 50,00). Talvez o público optou pelas outras atrações devido ao forte apelo comercial do merchandising, ou simplesmente por ignorância.

Estou cansada de ouvir que “em Goiânia nunca tem nada” etc e tal. Pois digo e assino em- baixo que aqui tem muitas opções culturais, como as peças e shows do Martim Cererê, cujos ingressos, geralmente, custam menos de R$ 5,00. Quando saem daqui, nossos artistas se destacam. O virtuose violonista Felipe Valoz e nosso cantador Francisco Aafa se preparam para uma temporada no Japão, no próximo ano.

Em todo o Estado temos uma infinidade de artistas anônimos esperando por uma chance. Já dizia o poeta que “O rio mais bonito é o rio que passa na minha aldeia”. Quando será que vamos enxergar a beleza do rio que passa na nossa aldeia?
* Artigo publicado no Diário da Manhã - DM Revista - em 8/4/2003

Sensação flamenca


Maria José Sá

O espetáculo de música e dança Sensação Flamenca será exibido hoje, às 21 horas, no Teatro Vila Marista, do Colégio Marista. Uma oportunidade imperdível para os apreciadores da cultura espanhola. Diz a lenda que quem canta flamenco sente um gosto de sangue na boca. De acordo com a bailarina Yara Castro, “esse ritmo é o pulsar do coração de uma pessoa, de um povo. É uma expressão, um sentimento interior. É o sentir da alma, do espírito, do sangue, da voz que canta sua dor, sua alegria, sua paixão, suas penas. Manifestação de um corpo que baila na mesma intensidade da emoção e personifica a todo o momento aquilo que está em suas raízes mais profundas e íntimas – um grito de liberdade que jamais será perdido”.

O flamenco é considerado um conjunto de formas de expressões de uma cultura genuína e arraigada em Andaluzia. Manifesta-se, principalmente, por uma maneira peculiar de cantar, bailar e tocar guitarra. Nos bailes flamencos, os movimentos, atitudes e gestos são determinados pelo temperamento e pela arte expressiva de quem baila. No entanto, algumas normas básicas são observadas. Na técnica dos pés, por exemplo, podemos observar o sapateado com sons ritmados cheios de musicalidade. Os movimentos suaves e ligeiros produzem deslocamento com demonstrações habilidosas. Nos bailes femininos, as mãos movimentam-se em giros expressivos, que marcam as características primárias presentes neste tipo de baile.

No flamenco, o corpo traduz a dualidade de contrastes, marcada em posturas estáticas e em “paseos”, realizando movimentos de torções convulsivos e violentos, acompanhados por constantes movimentos de braços. Nos bailes femininos, as mãos e os dedos movimentam-se em giros expressivos, que marcam as características presentes neste tipo de baile.

História
A bailarina Yara Castro explica que “percorrendo tudo que há para ler e pesquisar sobre a origem do Flamenco e seu patrimônio histórico, ficamos inertes frente a tantas hipóteses levantadas para dar respostas à origem cultural dessa arte. As primeiras reuniões aconteceram em Triana, e eram feitas em tabernas e botillerias, no pátio interno, enfeitadas por plantas como costume de Andaluzia (limoeiros, laranjeiras, gerânios, e jasmim). Eram encontros de caráter familiar, popular, em palmas, animando os bailaores, entoando olés e jaleos. Era um mundo cerrado, oculto, intimo, sem influencia externa reservada a uns poucos”.

A difusão do Flamenco através dos cafés tomou proporções tão amplas, de tão grande aceitação, que era rara a província que deixava de contar com a existência de um café cantante. Nos últimos anos , os bailes flamencos passam a mostrar uma mistura de dança e teatro, incorporando técnicas de expressão corporal, dando ao baile uma acentuada violência, exagerando nas expressões faciais que nada condizem com a hondura.

Ritmos distintos, numa mescla de fusões musicais e de elementos coreográficos e técnicos, passam dentro do mesmo baile, e muitas vezes parecem estar num caminho de notória confusão com escobillas e taconeos extensos, movimentos de baços e mãos contrários à linguagem tradicional.

Charme latino
A professora e coreógrafa Yara Castro desenvolve um trabalho de orientação, ensinamento técnico e essência da linguagem Flamenca, através de cursos e workshops por todo o Brasil, com montagem musical do professor de guitarra Flamenca Fernando de La Rua.

Como fruto dessa vivência, nasce em Goiânia o Grupo Sociedad Flamenca, composto pelas bailarinas: Luciana Rodovallo, Míriam Nogueira e Rossana Naves. O grupo teve início de sua carreira no espetáculo Encuentros, em maio de 2001, apresentando-se em Morrinhos, Brasília e Goiânia. Participou do espetáculo 5 Momentos, em São Paulo, realizado pelo Espaço Flamenco Yara Castro (dezembro de 2001). Também obtiveram sucesso no espetáculo Aires Del Flamenco (abril de 2002), apresentando-se em Goiânia e Brasília, e em apresentações no festival nacional da dança – Fest Dança (maio de 2002).

Sensación Flamenca é o novo espetáculo que traduz o trabalho solo da bailarina Yara Castro, com montagem e concepção musical de Fernando de La Rua.

Diretora do Grupo Flamenco Laurita Castro há 13 anos, Yara teve sua origem clássica, passando por várias linguagens da dança, como o afro, o jazz, até optar pelo Flamenco como sua forma de expressão artística. Desde 1991, vai para Espanha participar de cursos com grandes nomes do Flamenco, como La China, Carmen Cortéz, Rafaela Carrasco, Antonio Canales, Manuel Reyes etc.

Atualmente ministra cursos por todo Brasil, afirmando cada vez mais sua forma muito peculiar de bailar, coreografar e interpretar o Flamenco. Possui em São Paulo o “Espaço Flamenco Yara Castro”, onde trabalha com seu grupo profissional e com o guitarrista Fernando de La Rua.

Também participa do show o guitarrista e diretor musical Fernando de La Rua. Filho de espanhóis, Fernando inicia sua pesquisa no Flamenco em 1987, e desde 1988 trabalha com Yara Castro. Acompanhou em gravações alguns artistas do cenário musical brasileiro, como Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó, Roberta Miranda, sempre como solista convidado. Há cinco anos trabalha com a cantora Fortuna, em São Paulo, e vai anualmente à Espanha, desde 1991, trabalhar como guitarrista em vários tablados em Madrid, entre eles o Las Carboneras.

O guitarrista Tito Gonzales tem ascendência espanhola, iniciou seus estudos de Flamenco com Fernando de La Rua, com quem toca até hoje em trabalhos de dança e música instrumental. Dirigiu a parte musical do trabalho Amor Bruxo, em São Paulo, no Palace. Esteve em 1999 na Espanha, onde estudou com Gerardo Nunez, El Entri, Manolo Franco, entre outros.

José Fernandez é percussionista e cantor. Natural de Granada - Espanha, é gitano e pertence a uma das famílias mais tradicionais de Flamenco em Andaluzia. Trabalha com a arte Flamenca desde pequeno, seguindo as tradições de seus pais, e esta no Brasil a três anos. Miguel Alonso é cubano e vive no Brasil a três anos. Em Cuba se destacou em vários trabalhos em companhias de dança. Atualmente, atua como bailarino convidado e ministra aulas e cursos em todo o Brasil.

* Publicado no Diário da Manhã em 03 de abril de 2003

quinta-feira, julho 20, 2006

A Vila da Esperança


Três atores do Grupo Circo - Alegria do Povo somam forças para transformar a vida de uma comunidade

Maria José Sá

Já disse um poeta que, “sonho que se sonha só, é sonho; mas sonho que se sonha junto, vira realidade”. Foi pensando assim que os três atores do Grupo Circo - Alegria do Povo somaram as forças para transformar a realidade de uma comunidade carente na periferia da Cidade de Goiás. Há 12 anos, o mineiro Robson Max de Oliveira e os italianos Pio Campo e Lucia Agostini investiram seus patrimônios pessoais na construção da Vila Esperança.

O grupo adquiriu uma área de 15 mil metros quadrados, que era um depósito de lixo e, aos poucos, eles construíram um verdadeiro império da cultura afro-brasileira.

Pio Campo diz que o projeto nasceu da busca por um sentido mais profundo da vida. Ele é ator, bailarino, coreógrafo e dançaterapeuta. Pio trabalhava com turismo em Milão, e deixou tudo para desenvolver um trabalho artístico com comunidades carentes do Brasil. Aqui, ele conheceu seus companheiros de sonho.

A Vila Esperança tem uma brinquedoteca, com mais de 1.000 brinquedos e jogos didáticos, que atualmente é freqüentada, em média, por 200 crianças com idade entre seis meses e 14 anos.

Uma equipe de animadores culturais promove atividades lúdicas e os atores desenvolvem laboratórios de teatro, dançaterapia, artes plásticas, música e leitura. As crianças recebem merenda e noções de saúde bucal e higiene sanitária.

Os coordenadores optaram pela valorização e o resgate das culturas afro-brasileira e indígena. O tema é constante tanto na arquitetura e decoração como nas atividades didáticas desenvolvidas, incluindo freqüentes comemorações.

Depois da Brinquedoteca Alegria do Povo, o grupo idealizou e construiu dentro da Vila uma escola de ensino fundamental. “Procuramos realizar hoje uma escola com rosto latino-americano e uma escola pública diferente. Queremos ajudar a nascer uma nova geração de cidadãos do mundo, brasileiros orgulhosos de suas origens e valores.”

Tanto a escola como a brinquedoteca são totalmente gratuitas. Os alunos usufruem do contato com a natureza, das atividades artísticas e culturais desenvolvidas pelo grupo e dispõem de toda estrutura dos vários ambientes da Vila, como a Praça dos Ancestrais, o teatro de arena, o memorial da cultura indígena e afro-brasileira, o jardim das formas, parquinho, uma aldeia com cabanas indígenas e muito mais.

A megaestrutura é mantida com o trabalho dos atores e a ajuda de grupos italianos que contribuem com o salário dos funcionários. Os recursos são poucos, mas eles persistem. É um universo de criatividade, onde a capacidade de criação dos artistas é inesgotável.
* Matéria publicada no Jornal Diário da Manhã, de Goiânia, em 6/4/2003
Foto do site: www.vilaesperanca.org

Aprendendo à distância


Quando apresenta uma programação de qualidade, a televisão oferece resultados positivos. A instrutora de artesanato do Dim Dim, Nilva Bandeira, 48, conta que aprendeu seu ofício assistindo televisão.
“Aprendi artesanato no programa da Ana Maria Braga. Sou fã dela e sempre assisti desde o início, na TV Record e depois na Globo. Eu sou costureira, mas sempre gostei de trabalhos manuais. Anotava tudo que aprendia na tevê.”
Nilva diz que em Nova Veneza há muitas costureiras. “Antigamente, toda mulher aprendia a costurar, então o mercado aqui não é muito bom para esta atividade.”
Também foi com Ana Maria que Nilva aprendeu a aproveitar sucatas. “Passei a guardar jornais, latas de óleo, embalagens de refrigerantes, caixas de ovos etc.”
Utilizando a criatividade, Nilva foi transformando o que antes era lixo em objetos de decoração e brinquedos, que vendia. “Assim meu trabalho foi ficando conhecido e fui contratada para ensinar no Dim Dim. Ganho um salário mínimo por mês, como instrutora de artesanato. Vivo com minha mãe, que é idosa e doente. Ela ganha um salário de aposentadoria e essa é a nossa renda.”
A instrutora se diz feliz com seu trabalho. “É ótimo poder ensinar. As crianças gostam de fabricar seus brinquedos. Também há a possibilidade de ganhar algum dinheiro vendendo os trabalhos”. Nilva se diz grata ao programa.
Tiago Correia da Silva tem dez anos e está aprendendo a confeccionar caixas de presentes com Nilva. “Gosto do curso. Quando crescer, eu já saberei fazer alguma coisa. Minha mãe é costureira e meu pai é soldador. Quero vender meu trabalho para comprar as coisas que tenho vontade de ter. No momento, eu gostaria de comprar um monte de bom-bons e comer tudo sozinho.”

*Matéria publicada no jornal Diário da Manhã - encarte "Goiás em Raio X" - Nova Veneza

Amor incondicional


Graça e leveza marcam a dança de um grupo animado. Harmonicamente, os movimentos acompanham as nuances da música, ora suave, ora vigorosa. O espetáculo de rara beleza emociona os espectadores, que não contêm as lágrimas diante tamanha mostra de sensibilidade. Os bailarinos são deficientes auditivos e a maioria também sofre com algum nível de deficiência mental. Eles são internos do Asilo São Vicente de Paula, na Cidade de Goiás.

Há cinco anos, duas vezes por semana, o dançaterapeuta italiano Pio Campo ensina dança aos moradores do asilo, utilizando o método desenvolvido pela bailarina argentina Maria Fux. “O método internacional Maria Fux propõe mudanças por meio do movimento criativo, qualquer que seja a condição física ou psíquica. E ajuda a encontrar motivações para se aceitar, ter confiança e crescer.”

“Utilizamos a dança para sair da solidão, do isolamento, dos esquemas rígidos criados à nossa volta. Dançamos para aceitar as diferenças e descobrir a riqueza de quem é diferente. A dança que nasce na aparente imobilidade de quem está na cadeira de rodas, no silêncio de quem não ouve, no escuro de quem não reconhece o seu corpo. Dançar para dizer: sim, posso. Dançar para viver.”

Para desenvolver seu trabalho, Pio utiliza mímica e alguns objetos, como cadeiras e um elástico, para se comunicar com o grupo. Os movimentos são sincronizados e é difícil acreditar que aquelas pessoas não estejam ouvindo a música. De acordo com o especialista, na dançaterapia para deficientes auditivos o movimento nasce no mundo que os rodeia. “Utilizamos a música silenciosa que está escrita ao nosso redor. O silêncio é cheio de formas e pode ser dançado.” Os 30 bailarinos de Pio têm a expressão leve, são sorridentes, e cada um se comunica através de uma linguagem própria, desenvolvida de acordo com suas limitações. Assisti-los é um privilégio e uma lição de vida.

Freira é a mãe de todos

O Asilo São Vicente de Paula existe na Cidade de Goiás desde 1909 e atualmente tem 106 internos idosos. Cada doente traz consigo uma história de dor e abandono. Todos foram rejeitados pelas respectivas famílias e a maioria foi acolhida pela freira
Gabriela Guedes Coelho, que faleceu há 23 anos, deixando em seu lugar a dominicana Maria Aspásia Lisboa.

Irmã Aspásia, atualmente com 74 anos, não tira férias há 23 anos, desde que assumiu a direção do asilo. E nem pode, pois ela é a mãe de todos os internos. Na maior parte do tempo sozinha, ela ensinou aos portadores de deficiências leves a tomarem conta dos casos mais graves. “Eles me ajudam. Os menos doentes dão banho, vestem e penteiam os cabelos dos que não têm condições de se cuidar sozinhos.”

Ao fugir de casa para ser freira, a adolescente mineira não imaginava que tantas pessoas dependeriam do seu amor para sobreviver. Nos últimos 53 anos, irmã Aspásia morou em vários Estados e era diretora do convento do Rio de Janeiro quando a amiga Gabriela a convidou para conhecer a Cidade de Goiás. “Ela me apresentou aos pacientes e me ensinou como administrar o asilo. Dois meses depois, Irmã Gabriela faleceu, vítima de câncer, e tive que assumir o seu cargo. Minha vida mudou radicalmente.”

A freira ressalta que seus pacientes são especiais. “Eles não são abandonados, são de Jesus. Para manter a harmonia do asilo, o segredo é a higiene rigorosa e a boa alimentação, por isso, eles raramente adoecem.” O amor de irmã Aspásia e dos voluntários também é fundamental, tanto que nenhum dos internos precisa tomar medicamento forte. “Eles são excepcionais, mas têm sentimentos nobres.”

A solidariedade dos voluntários é um dos fatores que contribuem para o sucesso do trabalho de irmã Aspásia. “Temos artistas, professores e pessoas da comunidade que, além de ajudarem com doações materiais, desenvolvem diversas atividades recreativas e artesanatos. O trabalho do Pio, por exemplo, é maravilhoso e tem trazido inúmeros benefícios para o desenvolvimento deles.” Um grupo de voluntárias confecciona belas bonecas de pano que se parecem com Cora Coralina e são comercializadas para ajudar nas despesas da entidade. Dentre muitos outros, o empresário Leonardo Rizzo e o médico Fernando Cupertino de Barros, atual secretário de Saúde do Estado, são alguns dos grandes colaboradores do Asilo São Vicente de Paula.

São muitas as histórias tristes, como a de uma idosa que, além da deficiência mental, ainda é paralítica. Quando era jovem, para escondê-la, a família a deixava o dia inteiro dentro de um buraco cavado no chão. Com isso, suas pernas atrofiaram. Apesar de viver na cadeira de rodas, hoje ela tem uma expressão leve e acompanha a música movimentando os
braços e as mãos.

Irmã Aspásia não tem espaço e nem condições financeiras para aceitar novos doentes. Quem quiser ajudar o asilo, doações de alimentos, produtos de higiene e limpeza, e roupas são bem-vindas. Atualmente a freira sonha em ganhar uma máquina de fazer fraldas geriátricas. “O consumo de fraldas é grande e elas custam muito caro. Se tivermos uma máquina, poderemos confeccionar as fraldas; com isso, economizaríamos muito.”

No último domingo de cada mês, a freira promove um almoço comunitário com os colaboradores da instituição. “São mais de 50 famílias, e cada pessoa traz um prato. A banda da PM toca alegres músicas dançantes, e todos se divertem; é uma alegria para nós.” A incansável irmã Aspásia é alegre, cheia de vida e tem muita disposição para o trabalho. “Gosto muito daqui. Nosso universo é muito bonito e aqui estamos protegidos do mundo lá fora.”
*Matéria publicada no jornal Diário da Manhã - DM Revista - em 06 de abril de 2003
Obs. 1 - Uma pessoa se comoveu com a reportagem e doou a máquina de fazer fraldas para o Asilo São Vicente de Paula, no dia seguinte à publicação, mas me pediu para não ter seu nome divulgado.
2 - Irmã Aspásia Lisboa faleceu no último Natal (dezembro de 2005). Teve uma parada cardíaca enquanto dormia, e os doentes sentiram muito. A ordem Dominicana enviou três freiras para continuarem o trabalho de irmã Aspásia.

3 - Esta reportagem percorreu diversos lugares e foi parar até no convento das Domincanas na Itália. Também foi indicada para o Prêmio Ethos de Jornalismo, não venceu, mas conseguiu ter destaque entre as melhores reportagens da Região Centro-Oeste, do ano de 2003.

As casas de madeira de Iaciara


Em algum momento, Iaciara confunde-se com o Paraná. São as casas de madeira, com suas cercas baixinhas, muito comuns no sul do País. Construídas no auge da exploração da madeira, estas casas que têm fogão de lenha e chaminé compõem o cenário romântico e nostálgico da cidade.
O lavrador Lúcio Alves dos Reis, 49, conta que construiu sua casa há 12 anos. "Eu não podia fazer de alvenaria e, na época, a madeira era muito barata. Ganhei este lote do meu patrão e levantei minha própria casa".
Lúcio diz que hoje não teria condições de edificicar sua residência. "Agora a madeira está escassa e o preço subiu muito. Eu não teria como comprar a madeira atualmente".
Foi na casa de madeira que Lúcio criou seus oito filhos. O fogão é de lenha, tem energia, mas a família não tem televisão nem rádio. "As meninas assistem a novela na vizinha".
A situação está difícil e o lavrador e os filhos fazem bicos em fazendas. Eles sonham em poder trabalhar de carteira assinada, um dia. E agradecem a Deus pela casa própria.

* Iaciara é um município do estado de Goiás
*Matéria publicada no jornal Diário da Manhã, no encarte "Goiás em Raio X" - Iaciara

Peão bem sucedido


Com apenas 22 anos de idade, Rogério Pereira já é um fazendeiro bem-sucedido. Ele é o peão de boiadeiro mais premiado de Iaciara. Somente em seis anos de competições, o jovem já conquistou quatro carros e 14 motos em prêmios. A maior conquista de Rogério foi o primeiro lugar no Rodeio Mundial de Barretos, em agosto de 2000. Este ano, até o fechamento desta edição, o peão havia participado de cinco rodeios e vencido quatro. Dentre suas vitórias, ele cita competições na Granja do Torto, em Brasília.
No ano passado, Rogério ganhou R$ 10 mil na Exposição Agropecuária de Aparecida de Goiânia e R$ 12 mil na Exposição de Goiânia. Filho de pai comerciante e mãe enfermeira, Rogério Pereira monta desde os 11 anos de idade, mas começou a treinar para rodeios na fazenda de amigos, aos 14 anos de idade. Foi quando abandonou os estudos. "Estudei até a 7ª série. Tive que parar por causa das competições. Toda semana viajava para um lugar diferente e não tinha como seguir a escola".
Mas o rapaz nasceu com a estrela de vencedor. Com o dinheiro ganho nos prêmios, há dois anos Rogério comprou sua própria fazenda, de 35 alqueires, e seus próprios animais.
Apaixonado por bichos, o peão ressalta que mantém um veterinário em sua fazenda. A grande paixão de Rogério são seus dois touros: Mano Véio, da raça Simental, e Brasileiro, um nelore. O boi mais bravo que o peão enfrentou foi o Boêmio, da raça Chianini, do fazendeiro Marcelo Souza, de Anápolis. O peão ganhou um Ford Fiesta por ter se mantido sobre o touro por 20 segundos.
Em janeiro, Rogério vai competir em Boston, nos EUA. Ele afirma que os animais sabem que estão competindo. "Eles entendem o momento do show"

*Matéria publicada no jornal Diário da Manhã, no encarte "Goiás em Raio X" - Iaciara

Santuário para deusa hindu


Sarasvati, a deusa hindu da sabedoria, tem um santuário a 12 quilômetros de Cocalzinho. Os 11 alqueires da propriedade têm jardins de plantas ornamentais e ervas medicinais, piscinas de água corrente, espaço para meditação, um teatro de arena, área de camping e 15 cabanas de palha para turistas, dentre outros atrativos.
O espaço pertence ao cientista político americano Victor Hart. Ele avisa que, a partir de julho, o Santuário de Sarasvati estará pronto para os turistas.
Victor pretende investir no turismo religioso. Ele vai alugar sua fazenda para convenções, cursos e encontros de grupos religiosos, místicos e esotéricos. “Aqui é o local perfeito para meditação. Em julho, receberei o primeiro grupo. Eles são membros de uma igreja sediada nos Estados Unidos. Virão pessoas de vários países, para a convenção anual da igreja.”
Hart aproveita ao máximo os recursos naturais. A energia da propriedade é solar, as plantas são nativas, a alimentação é natural. O ar é puro e o ambiente ideal para quem está saturado do estresse das cidades.

*Matéria publicada no jornal Diário da Manhã, no encarte "Goiás em Raio X" - Cocalzinho

Religiosidade em Cocalzinho


Cocalzinho de Goiás é um município novo e ainda está construindo sua identidade cultural. Mas a religiosidade tem uma forte presença, principalmente entre os mais velhos. A maioria católica da população mantém altares dentro de casa, com imagens de santos, onde fazem suas novenas.
A aposentada Sebastiana Alves de Assunção, 75, é um exemplo clássico da goianidade. Muito católica, ela reza diariamente em frente ao seu altar, onde tem imagens e pôsteres de seus santos preferidos.
Nascida e criada numa fazenda em Corumbá, Sebastiana conta orgulhosa que tem este nome porque nasceu no dia de São Sebastião, 20 de janeiro.
Sebastiana mora em Cocalzinho desde a emancipação do município e diz que seu programa preferido sempre foi ir à igreja. “A casa de Deus é muito boa. Quando vamos à igreja, trazemos Jesus para casa. É em frente ao meu altar que converso com ele, que sempre me responde. Tenho muita fé em Deus.”
A Folia de Santos Reis, no dia 6 de janeiro, e as festas juninas são especiais para este povo religioso.
No campo da literatura, destaca-se o livro Esboço histórico de Cocalzinho de Goiás. O autor, Antônio Pimentel, registrou a história da emancipação política do município. É um precioso trabalho de documentação que serve de referência para estudantes e pesquisadores. No livro Destino de Amor, o poeta Luciano Petroceli rasga o seu coração em belos poemas românticos.
Sobre a publicação do seu livro, Luciano diz o seguinte: “Em minha vida persegui um sonho. Em torno deste sonho havia Deus para me fortalecer, dando forças para que eu continuasse lutando. Assim eu continuei, pois ele sabe o quanto eu queria este sonho, e mostrar que era capaz de realizá-lo.”
*Matéria publicada no jornal Diário da Manhã, no encarte "Goiás em Raio X" - Cocalzinho

Artesanato no Parque Nacional das Emas


Chapadão do Céu é um município que protege a infância e acredita no futuro de suas crianças. O maior exemplo disso é o bem-sucedido Projeto Florescer.
Criado há 12 anos, o programa municipal está em constante evolução e atualmente atende 120 crianças carentes de 7 a 16 anos.
O Florescer oferece inúmeras atividades pedagógicas. Tem oficina de artes, teatro, leitura, arte culinária, bordado, oficina de pipas, modelagem em argila, aulas de xadrez, dança, reforço escolar, karatê, capoeira e natação, dentre outras modalidades.
A partir dos 16 anos, os alunos do Florescer podem auxiliar os professores, na condição de monitores, ganhando uma bolsa mensal de R$ 90,00. As bolsas são subsidiadas por empresários da região. Os monitores se habilitam para trabalharem em escolinhas infantis.
Florescer
Localizado no Parque Nacional das Emas, o projeto Florescer tem como um dos principais objetivos a educação ambiental. A sede do Florescer é uma chácara próxima da cidade. Lá tem pomar, jardim e horta, inclusive com plantas medicinais, que os alunos aprendem a identificar.
E é neste ambiente bonito e tranqüilo que a criatividade floresce. Antas, araras, tamanduás, tatus, lobos, emas e muitas outras espécies do cerrado emprestam suas formas e coloridos aos trabalhos manuais produzidos pelos alunos.
As crianças aprendem os hábitos de cada animal da região, enquanto confeccionam almofadas, sacolas, quadros e diversos objetos em forma de bichinhos.
A coordenadora do projeto, Marta Ferreira Costa, diz que o objetivo é resgatar o amor pela natureza.“Aqui as crianças aprendem que os animais e as plantas também têm sentimentos e precisam ser tratados com carinho.”

Pipas rumo ao céu
A atividade preferida pela petizada do Florescer é a confecção de pipas. A expectativa é grande por causa do Torneio Municipal de Pipa e a criatividade corre solta.
São pipas com formato de bichinhos, de tamanhos variados. A performance também conta e o céu de Chapadão é colorido pelas obras de arte.
A professora de pipa,Cleusa Ribeiro Martins, 39, conta que está no projeto há cinco anos. “Aprendi a linguagem infantil com meus três filhos, que já estão grandes. Cada aluno daqui é como se fosse meu filho também. São crianças dóceis, carentes financeira e afetivamente. Todos são muito queridos pela equipe de professores. Somos uma grande família”, conclui.
Elói Luiz Abelig, 11, está há três anos no Florescer e diz que adora confeccionar pipas. “Existem muitos modelos. Agora estou fazendo uma pipa invasora”, ensina.
Francisco Leonardo da Silva, 11 anos, está no projeto desde os 7. Ele é campeão de xadrez, caratê e futebol.

* Matéria publicada no jornal Diário da Manhã, no encarte "Goiás em Raio X" - Chapadão do Céu - 2003

Um artista muito eclético


Dirceu Martins, 56, é um artista completo. Paranaense de nascimento, há dois anos ele adotou Chapadão do Céu como sua terra do coração.
Com diversos cursos de Belas Artes, Dirceu também é formado em Dança pela Escola Municipal de Bailado de São Paulo. Ele ainda tem cursos de especialização em Educação Especial, pintura em tecido, artes plásticas, danças folclóricas, artesanato, reciclagem de sucata e teatro.
O artista conta que adora trabalhar com crianças e já lecionou na Apae. É ele quem comanda a parte de educação artística do Projeto Florescer. “Este projeto tem tudo para crescer. Lá, tenho todo o apoio da prefeitura, e já descobri muitas crianças talentosas”, revela.
Dirceu ainda ensina dança e pintura para a comunidade. Duas vezes por semana, ele agita o baile da terceira idade, que atrai pessoas de todas as faixas etárias e diferentes condições sociais.
As telas do artista reproduzem cenários paradisíacos, animais e cenas do cotidiano. Suas cores são fortes, alegres e os traços suaves e firmes.
Completamente envolvido e apaixonado por suas atividades, Dirceu Martins afirma o seguinte: “Embora seja trabalho, sinto que estou fazendo a minha parte como cidadão. Estou feliz e me sinto realizado”, conclui.

tradições gaúchas
Três vezes por semana, parte da população de Chapadão do Céu se reúne para uma boa invernada, no Centro de Tradições Gaúchas. Sob o comando do mestre André Luís Gonsalves, 27, vestidos a rigor, os peões e as prendas se divertem ao som da boa música dos pampas.
O objetivo é preservar a tradição gaúcha e o grupo atualmente tem 27 alunos com idades entre 10 e 54 anos. O mais interessante é que, destes, apenas quatro são gaúchos legítimos. Lá tem de tudo: goiano, mineiro, paranaense, paulista e mato-grossense. Todos se dizem apaixonados pelas músicas e rodopiam felizes pelo salão do CTG Querência do Céu.
O goianiense Jorge Vinícius Barbosa, 16, conta que não se importa com a gozação da família. “Eu gosto de tudo: das roupas, das músicas e dos colegas.”
André Luís, que é mato-grossense de Três Lagoas, conta que os integrantes do grupo incialmente são atraídos pela curiosidade, depois se apaixonam pelo ritmo.
O grupo de danças folclóricas do CTG já tem diversas apresentações agendadas.

* Matéria publicada no Jornal Diário da Manhã, encarte Goiás em Raio X" - Chapadão do Céu

Os ilustres da cidade

Mineira visionária, ela mudou-se para Campos Verdes bem no início do garimpo, em busca de melhores oportunidades. Quem não conhece a dona Joana do hotel?
Ela sabe absolutamente tudo da cidade, nos mínimos detalhes, que faz questão de contar aos visitantes. A empresária Joana Aparecida e o marido, Wilson Pereira, se mudaram para Campos Verdes antes da emancipação do município.
“Morávamos numa fazenda em Crixás e viemos para cá com as três crianças bem pequenas, o caçula tinha um ano. Construímos nossa casa e 20 quartos de aluguel. Com a febre do garimpo, vinha gente de todo lado, isso aqui parecia um formigueiro”, conta Joana.
“Aqui não tinha nada. Tudo era cerrado. Todo dia chegavam centenas de pessoas em busca das esmeraldas. Meu marido era motorista nessa época, e eu tocava nosso negócio sozinha. Meu filho Franksmar e os irmãos cresceram com a cidade.”
Joana conta que tinha briga por falta de vagas. Havia mais três hotéis, todos lotados. Então, quem chegava fazia barracas de lona pela cidade, porque não tinha onde ficar.
A empresária diz que assistiu o apogeu e a decadência do garimpo. “Crianças andavam pelas ruas brincando com notas de R$ 100,00. Todo mundo tinha dinheiro e gastava sem dó há uma década.”
Beneficiados pelo movimento do garimpo, Joana e o marido construíram o Hotel Campos Verdes, o único familiar que sobreviveu com a decadência financeira do município.
Esperançosa, a empresária aposta na nova fase do garimpo e já se prepara para receber novos investidores em seu estabelecimento. “A partir de maio, quando vai ter a feira das esmeraldas, se vocês quiserem vir para cá, vão ter que ligar com muita antecedência reservando quartos”, avisa.

Recordações
Joana lembra que já hospedou pessoas de todos os tipos. “Desde elegantes investidores estrangeiros a matadores de aluguel. Graças a Deus, nunca tive problema com hóspede. Todos sempre respeitaram o meu estabelecimento e sempre pagaram direitinho.”
A violência também já deixou marcas na jovem cidade. “No auge do garimpo, todo dia tinha um assassinato aqui. A cidade era cercada de policiais. Prostitutas e bebida não podiam entrar. Com a decadência, os baderneiros foram embora e hoje vivemos em paz".

* Matéria publicada no jornal Diário da Manhã, no encarte "Goiás em Raio X" - Campos Verdes

A cachoeira dos milagres


A Cachoeira da Água Santa foi revelada para Zilá Maria de Rezende Rocha, 76, em um sonho, em 1963. Ela se considera abençoada e conta que sentia fortes dores no estômago, assim como seu filho, à época com 13 anos de idade. “Estive em vários médicos e tomei todo tipo de remédio. Nada aliviava a dor. Um médico foi muito grosseiro comigo porque não consegui me adaptar à medicação que ele prescreveu”.
Zilá relata que, sentindo-se humilhada, desesperou-se e pediu a Deus que lhe aliviasse a dor. “Três noites depois, sonhei com um homem forte, de meia idade. Ele usava calça cinza e camisa branca. Estava sentado na minha sala e me disse que os médicos não conseguiriam curar a minha dor e que o único remédio era a água de uma cachoeira e indicou o local.”
Zilá sempre morou em Santa Rita do Araguaia, e veio a Cachoeira de Goiás com o marido e o filho em busca da cachoeira do sonho. Após vários dias abrindo estrada no mato, o marido de Zilá encontrou a nascente do Rio Claro. Em seguida, ela avistou a cachoeira. Após vários banhos na água santa, Zilá e o filho se curaram do mal que os atormentava.
* Matéria publicada no jornal Diário da Manhã, no encarte "Goiás em Raio X - Cachoeira Santa"

quarta-feira, julho 19, 2006

Vida e o Poeta


No asilo, os dias eram longos e a rotina enfadonha. Amargurados pelo abandono, os velhos decrépitos aguardavam ansiosos pela morte, que lhes chegava como alento. Mas havia uma anciã que fazia a diferença. Ela se chamava Vida e teimava em não envelhecer a alma. Vaidosa, estava sempre muito elegante e perfumada. A intenção não era esconder a idade, que já beirava o centenário, mas aproveitar até a última gota do que acreditava ser um presente divino: sua existência.
A cadeira balançava suavemente e os pensamentos da velha voavam para um tempo muito distante: A alegre menina desengonçada sonhava com um mundo melhor. Acreditava na revolução pela arte, fazia teatro, devorava livros, inclusive os complicados tratados marxistas, que fingia entender. Queria que não faltasse pão para os irmãos, e gostava da poesia marginal que denunciava a fome do corpo e da alma, incitando os estudantes e operários para a luta.
Passaram-se os anos e a menina sonhadora teve que lutar pela própria sobrevivência. Aprendeu que o jogo quase sempre é sujo e que sonhos não pagam contas. Deixou de ler e escrever poemas, e de ser menina. Felina, a fêmea partiu para a revolução sexual. Até que a mulher moderna, liberada e independente viu seu estereótipo cair por terra ao descobrir o fogo da paixão. Fez tudo o que sempre condenou em seus discursos feministas: se humilhou, rastejou, chorou e apanhou.
Ferida, a mulher descobriu o caminho da espiritualidade. Devorou ensinamentos de mestres que estão acima dos sentimentos humanos. Morou na Índia, abriu mão da vaidade, a luxúria abandonou seu olhar e ela tornou-se um ser tranqüilo, em paz consigo. Dizia que ao salvar sua alma, seria um problema a menos para o mundo. Viveu assim por alguns anos, até que sentiu fome de viver. Ela não queria ser santa, não buscava a perfeição e entendeu que uma existência sem riscos de erros e acertos não valia nada.
Perdida, Vida encontrou o poeta, que era um alegre aventureiro. Sedutor, ele tocou seu corpo e aqueceu sua alma. Ela teve medo de se ferir novamente e pensou na tristeza da partida. Entretanto, a alegria do encontro era muito maior. Amadurecida, aprendera a arte de viver. O poeta se foi. Ao final da sua existência, Vida não esperava a morte, mas se perfumava para o poeta. Ela sabia que ele viria buscá-la para uma outra dimensão, onde o amor é infinito.


Maria José Sá
1º de janeiro de 1995