sábado, dezembro 28, 2013

Clarice Lispector

"Viver ultrapassa qualquer entendimento"

Clarice Lispector (Tchetchelnik Ucrânia 1925 - Rio de Janeiro RJ 1977) passou a infância em Recife e em 1937 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em direito. Estreou na literatura ainda muito jovem com o romance Perto do Coração Selvagem (1943), que teve calorosa acolhida da crítica e recebeu o Prêmio Graça Aranha.

Em 1944, recém-casada com um diplomata, viajou para Nápoles, onde serviu num hospital durante os últimos meses da Segunda Guerra. Depois de uma longa estada na Suíça e Estados Unidos, voltou a morar no Rio de Janeiro. Entre suas obras mais importantes estão as reuniões de contos A Legião Estrangeira (1964) e Laços de Família (1972) e os romances A Paixão Segundo G.H. (1964) e A Hora da Estrela (1977).

Clarice Lispector começou a colaborar na imprensa em 1942 e, ao longo de toda a vida, nunca se desvinculou totalmente do jornalismo. Trabalhou na Agência Nacional e nos jornais A Noite e Diário da Noite. Foi colunista do Correio da Manhã e realizou diversas entrevistas para a revista Manchete. A autora também foi cronista do Jornal do Brasil. Produzidos entre 1967 e 1973, esses textos estão reunidos no volume A Descoberta do Mundo.

Escreve a crítica francesa Hélène Cixous: "Se Kafka fosse mulher. Se Rilke fosse uma brasileira judia nascida na Ucrânia. Se Rimbaud tivesse sido mãe, se tivesse chegado aos cinqüenta. (...). É nessa ambiência que Clarice Lispector escreve. Lá onde respiram as obras mais exigentes, ela avança. Lá, mais à frente, onde o filósofo perde fôlego, ela continua, mais longe ainda, mais longe do que todo o saber".
(Fonte:www.pensador.info)




A descoberta do amor
“[...] Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. [...] Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. [...] Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é por pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita.”

Temperamento impulsivo

“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”

Lúcida em excesso

“Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.

Ideal de vida

“Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.
[...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.”

A síntese perfeita

“Sou tão misteriosa que não me entendo.”

A certeza do divino

“Através de meus graves erros — que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles — é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no nada.”

Viver e escrever

“Quando comecei a escrever, que desejava eu atingir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranqüila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes.”
“Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no mundo. Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. Não sei mais escrever, porém o fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me salvará da literatura.
O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.”
“Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem sabe, também eu já poderia não escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável”.

Um vislumbre do fim

“Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”

Textos extraídos do livro "Aprendendo a viver", Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.
 

Canção do Amanhecer

Thursday, September 10, 2009 10:35:41 AM


Prelúdio

“Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar o rio da vida – ninguém, exceto tu, só tu.”
Nietzsche



O que existe por trás daquele muro? O que é loucura? O que é ser normal? Quem são eles? Quem sou eu? Diariamente estas perguntas me atormentavam quando eu passava em frente ao Complexo Psiquiátrico Adauto Botelho. 
Em busca de algumas respostas, durante o ano de 1991, participei de um grupo de estudos formado por alunos e professores da Faculdade de Psicologia da Universidade Católica de Goiás, sob a coordenação do professor Northon Godinho Leão. Tive a oportunidade de ler, e compreender, inúmeras obras de psicologia. Nesse período também aprofundei os estudos em Filosofia e me apaixonei perdidamente por Nietzsche.

No início de 1992, durante férias em São Paulo, visitei o Projeto Tam-Tam, em Santos. Fiquei encantada com o trabalho realizado sob a coordenação do arte-terapeuta Renato Di Renzo. Os pacientes comandavam a Rádio Tam-Tam, que à época tinha o maior índice de audiência na cidade. Uma equipe profissional multidisciplinar desenvolvia inúmeras atividades artísticas e tinha até um grupo de teatro. Lembro-me que o maior sucesso era um paciente que imitava, com perfeição, o jornalista Gil Gomes, que na sátira se chamava “Gel Gomes”. Era muito engraçado e o grupo fazia sucesso.
No último ano do curso de Jornalismo, na UFG, tínhamos que desenvolver um projeto de Comunicação Comunitária, em grupo. Com sólido embasamento teórico e grande curiosidade, eu quis fazer meu projeto na comunidade do Complexo Psiquiátrico Adauto Botelho. 
A professora de Comunicação Comunitária, Silvana Coleta, prontamente aceitou a proposta, mas nenhum colega quis me acompanhar (disseram que era loucura...). Após reunião da professora com a direção do Hospital, foi decidido que eu trabalharia durante aquele ano (1993), com um grupo de 16 pacientes esquizofrênicos do Hospital-Dia. Eles ficavam na instituição das 8 às 17h, de segunda à sexta-feira, onde eram medicados e desenvolviam algumas atividades ocupacionais, como a confecção de tapetes. 
Do início de abril a dezembro de 1993, eu passei todas as manhãs de sexta-feira no Hospital-Dia, que era anexo ao hospício. Então, parti para minha missão solitária, até o momento, a mais emocionante da minha vida.

Alvorecer
“Na solidão, o solitário se devora a si mesmo; na multidão, devoram-no inúmeros. Então, escolhe.”

Redigi um projeto de rádio comunitária, uma versão mais modesta da Rádio Tam-Tam. Entretanto, no primeiro contato com meu grupo, levei um choque. Deparei-me com pessoas inertes, sem vida. Eles estavam sentados nos bancos, sonolentos (pelo efeito da medicação), não se comunicavam e nem esboçavam vontade de participar de qualquer atividade. Naquele momento, o silêncio gritava mais alto, porque a situação falava por si.

Compreendi que os intelectuais teorizam sobre teorias, criando um mundo envolto em uma densa rede de palavras elegantes que embaçam a visão da realidade concreta que nos rodeia. Senti que estava sozinha e tive medo de não conseguir me comunicar com meu grupo. Passei a semana imaginando uma forma de acordar aquelas pessoas que vivenciaram grandes sofrimentos e estavam em profunda solidão. Entendi que para transpor a barreira, eu teria que me desprender dos meus (pré) conceitos. Decidi compartilhar com eles a grande paixão da minha vida: a música.Como não podia imaginar o gosto musical dos meus novos companheiros, enchi duas sacolas com LPs (aquelas bolachas enormes de vinil, porque ainda não tinha CD) de diversos estilos, que eu tinha em casa. No Hospital-Dia havia uma vitrolinha. Na sexta-feira cedo, embarquei ansiosa no ônibus do Campus, carregando as duas sacolas cheias de discos. Meu “insight” foi genial. Quando espalhei os discos pelo chão, todo mundo queria ouvir música. Cada um escolheu seu disco e fomos ouvir, cantar e dançar. A direção do Hospital-Dia nos deixou à vontade e, a partir daí, todos os nossos encontros foram festivos. Até hoje guardo esses LPs com carinho, mas não consigo ouvir as músicas que usávamos, porque lembro de cada paciente e um nó aperta minha garganta.Meu grupo era dócil mas, na maior parte do tempo, eles se desligavam do mundo e pareciam sonolentos, provavelmente pelo efeito dos remédios. Quando entravam em surto, eram internados. Cheguei a visitar alguns em crise. Foi horrível! Criaturas amáveis transformavam-se completamente. Não reconheciam ninguém, eram “enjaulados”, gritavam e ficavam nus para não se enforcarem com as próprias roupas. Semanas depois, retornavam para o grupo, tranquilos como se nada tivesse acontecido.
Canção do Amanhecer

“O valor da vida não pode ser avaliado”


Cada membro do grupo escolheu uma música para si. Como no hospital não tinha lugar para guardar os discos, toda sexta-feira eu pegava o ônibus com as duas sacolas. No quarto encontro, decidimos brincar de rádio. Sem nenhum recurso, a brincadeira era assim:
O Romário foi eleito para locutor. Ele sentava ao lado da vitrola e começava a conversar com os “ouvintes”. Uns liam trechos de revistas, outros inventavam. Na conversa, eles pediam a música que gostavam, a música tocava e, em seguida, outro ouvinte “entrava no ar”. Minha função era segurar meu gravador durante as conversas e colocar as músicas pedidas na vitrola. Assim nos divertíamos bastante. 
Fizemos votação para escolher o nome da nossa “emissora” e o mais votado foi “Rádio Canção do Amanhecer”, sugerido pelo Zé Élio, um rapaz de 19 anos, muito inteligente, bonito e que havia estudado até a 6ª série. Todas as vezes que eu chegava ao Hospital-Dia, meus amigos estavam me esperando na porta. Eles passavam a semana ensaiando a participação na nossa rádio, viam revistas, trocavam idéias e sempre tinham novidades para contar. Me afeiçoei ao grupo e resolvi comemorar os aniversários do mês. 
Na última sexta-feira de cada mês, a partir de junho, além da mochila nas costas e as duas sacolas com discos, eu também carregava um tabuleiro com bolo, que eu mesma fazia na noite anterior. No ônibus lotado, era um exercício de equilíbrio... Mas o sacrifício era recompensado pela alegria na hora de cantar parabéns.
Nossas manhãs passavam cada vez mais rápido. Em dois meses, todos já se comunicavam e observei que os que tinham dificuldade para falar estavam desenvolvendo a linguagem. Eram apenas duas mulheres (a Maria, 38, e a Meire, 19) e 14 homens, por coincidência, a maioria com sobrenome Oliveira. As idades variavam entre 19 e 65 anos. Mas todos eram crianças.











Com o passar do tempo, eu sentia cada vez mais que havia ganho uma família. Era o último ano do curso de Jornalismo e eu estagiava no jornal O Popular (ganhava uma bolsa de meio salário mínimo, à época, minha única fonte de renda), portanto não tinha como passar mais tempo com meu grupo. Observei que eles eram românticos e gostavam de poemas. Um dia, distribuí papéis e canetas. Foi outra festa. Enquanto ouviam suas músicas, eles desenhavam e escreviam. Fiquei extremamente emocionada com as poesias. Mesmo sem ter muito estudo, eles deixavam brotar seus sentimentos mais profundos de maneira poética. Foi uma experiência incrível que resultou em inúmeras obras-primas. No mês de agosto decidimos lançar nossa revista, que o André Antônio batizou de “Arte é Vida”. Como não tínhamos nenhum dinheiro, a revista era assim:Eu dobrava as folhas de papel chamex no meio e as distribuía. Cada um tinha direito a uma face do papel para fazer o que quisesse. Quem não sabia escrever fazia as ilustrações. Eles iam trocando os papéis e a produção artística e literária foi maravilhosa. Surgiam as imagens mais inusitadas e belas. Fiquei surpresa com o potencial deles. Tanto os desenhos como os poemas evidenciam o “eu dividido”, a fragmentação do indivíduo, a solidão, a contradição e o sofrimento por ser diferente. Infelizmente, além de não ter dinheiro, eu também não tinha tempo e nem competência para buscar patrocínios. Dos poucos patrocínios que pedi para nossa revista, recebi “não” como resposta (um deles foi a xerox do CA de Jornalismo). Mas não me importei, as pessoas normais são insensíveis mesmo. Quando me sobravam alguns trocados, eu xerocava as revistinhas, que eram distribuídas para os pacientes e a equipe do Hospital-Dia. E sem dinheiro consegui levar meu projeto até o final do ano. Tive a grande recompensa de acompanhar a evolução do grupo. Completamente envolvidos pelas atividades da rádio e da revista, os pacientes saíram do estado inicial de paralisia diante da vida. Eles estavam cada vez mais alegres e cheios de ânimo. Também observei que a ansiedade, típica da doença, havia diminuído. Concluí que eles só precisavam de mais atenção e alguém que promovesse a comunicação entre eles. Mas a melhor parte foi a mudança que este grupo fez no meu interior. Eles me ensinaram a dimensionar a vida.No final do ano de 1993, publiquei uma matéria sobre o projeto no jornal O Popular. Embora a realidade do Hospital-Dia fosse mais amena do que a vivida pelos pacientes internos no manicômio Adauto Botelho, na matéria eu mencionei, de maneira sutil, as dificuldades pelas quais o Complexo Psiquiátrico vinha passando, como um todo. Fui proibida de continuar frequentando o Hospital. Sofri muito, pois eu amava os pacientes e imagino que eles também tenham sentido minha falta. Com essa experiência, finalmente entendi que não se deve medir forças com o poder. Foi minha primeira decepção como jornalista (depois vieram muitas outras). Comprovando que “o tempo é senhor da razão”, dois anos depois o Complexo Psiquiátrico Adauto Botelho foi demolido. Em seu lugar surgiu um moderno Centro de Reabilitação Fisioterápica, que beneficia milhares de pessoas carentes. Só ficou uma dúvida no ar: Com a demolição do Complexo Psiquiátrico, o que foi feito dos doentes mentais cujas famílias não têm condições de ficar com eles?Recentemente, tive notícias do meu grupo: alguns já morreram, outro matou a tia durante um surto e outros estão por aí...Hoje, 16 anos depois, pego a revistinha “Arte é vida” (amarelada pelo tempo, no fundo do baú) e sinto que alguma coisa valeu a pena.       (Maria José Sá – e-mail: mariajosesa1@gmail.com )

Arte é Vida


“Somente depois de teres deixado a cidade, verás a que altura suas torres se elevam acima das casas.”


Hoje não consigo pensar
Nem sequer me lembrar
De coisas que não convêm;
Pois preciso descansar, sem me concentrar.

Contudo, muitas coisas não passam desapercebidas,
Pois as vistas inquietas conseguem captar
Gestos, movimentos e coisas.

As formas às vezes requerem atenção
Pois são atraentes para ver ou sentir,
Como um quadro pintado
De rabiscos grotescos, bonitos,
Porém sofridos.
O cenário e penário, a aparência doída,
Assim é a vida.
Romário Oliveira


Desabafo

Eu tenho um problema,
Mas não me afeta
A minha vida é um tormento
O meu coração sente,
Busca inspiração
Acho só solidão
Mas eu tento e quero
Estar junto da multidão
André Antônio Martins


A Ressurreição

Não gostaria de me despedir
Mas gostaria de estar aqui
Num lugar muito distante
Que vos falo
Falo de amor
Um caminho no lugar límpido
Cheio de luz
Onde o tempo está parado
Onde a luz também está parada.

É o tempo da purificação do homem e da mulher
Deus chamou todos para a vida
É a ressurreição
Não pode haver conflito de pessoas
Existe ar para todos
O ar não se compra, ele se dá
Senti falta de ar e tive que pedir esmola para respirar.
A luz está brilhando para todos.
José Élio




Ternura

Estrela que brilha
Ilumina o espírito.
Relâmpago no céu
Com sol e chuva
Cai na minha cabeça
No chão eu caio,
Da ruína esqueço.
Levanto em outro mundo
A cura foi por Deus
Oliveira Rodrigues


A luz da vida

Que luz mais bonita
Parece ser anil.
Brilha mais que a luz da vida.
Olha a luz do eterno horizonte
Sua fonte tem esplendor
Mas escrevi isso, vai de gente.
Olha, mas que bonito é quando você brilha no caminho da floresta.
E brilha tão grande, porque tu és a bela.
E só fico olhando o caminho,
Porque tu és tão bonita.
Everaldo Oliveira dos Santos



Meu coração é meu lar
Minha visão, minha vida
Meus pés a minha salvação
Minha cabeça, a minha bússola.

Walmyr Esteu[/ALIGN]


Luxúria Thursday, August 27, 2009 10:55:00 AM
Quando a gente planta uma semente, nem sempre dá tempo de ver a árvore crescer.
Unregistered user Saturday, March 27, 2010 6:31:02 PM
Sebstião Moreira writes: Achei lindo o seu trabalho . Parabéns pelo blog e pela experiência. Daqui a alguns anos, quando a esquizofrenia estiver totalmente estudada, melhor entendida e completamente curada, iremos lembrar como os "loucos" eram tratados e ficar envergonhados como nós médicos os tratavávamos. O velho Adauto Botelho já não existe mais e agora tem aquela grande obra em seu lugar: o CRER. Assim aconteceu com várias doenças, como a tuberculose( existia até o hospital JK, ali na BR-153, hoje Hospital de Medicina Alternativa) e os doentes eram isolados da sociedade para serem tratados. Graças a essa doença perdemos o grande poeta Castro Alves aos 24 anos. O mesmo acontecia com os leprosos, que eram isolados em colônias agrícolas como a Colônia Santa Marta em Goiânia. Hoje se sabe que a hanseniase(até o nome mudou!)tem cura e os pacientes ficam em casa para terem melhor recuperação. Assim é a evolução dos homens e da ciência...
Unregistered user Thursday, April 15, 2010 5:40:22 PM
Juliana Cristina de Mello Gomes writes: Fiquei fascinada pelo seu depoimento. É incrível ver como existem pessoas com a capacidade de doar um pouco do seu tempo e de si mesmo pelos outros. Outros esses que às vezes nem conhecemos. Parabéns. No passado vc fez esse voluntariado naquele complexo e agora, no futuro eu fiz um voluntariado no CRER.


Maria José SáMariazeze Friday, October 26, 2012 9:18:28 AM
Obrigada pelos comentários. Estou passando por um momento de superação, e vocês me fizeram lembrar que alguma coisa valeu a pena nesta trajetória tão tumultuada.

Fragmento...

Registro aqui um fragmento do trabalho do polêmico (e bota polêmico nisso!!!!) jornalista português (do Porto) Miguel Sousa Tavares.
Que Miguel Tavares me perdoe, mas tomo a liberdade de deixar, aqui no meu humilde espaço, trechos de um dos seus textos, que mais gosto, que pode ser encontrado, na íntegra, no livro "Não te deixarei morrer David Crockett", editora Oficina do Livro/2004. Ele escreveu esse texto em homenagem à mãe, a grande poetisa Sophia Mello Breyner Andresen, já falecida.



(...)Sabes, quem não acredita em Deus acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara; para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos; para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa; para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.

E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de setembro, com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros.
Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu pra sempre."

(Miguel Sousa Tavares)

Comments

Regis BastianRegisB Thursday, September 3, 2009 8:16:13 PM
Hoje esse texto não saiu do meu pensamento depois que o li. Principalmente porque o associo a você, ao BR. Principalmente, "nada do que é importante se perde verdadeiramente". Preferiria não ler mais seu blog para não perder o foco aqui. Falar com vc na volta. Cuide-se.
Luxúria Monday, September 7, 2009 12:45:17 PM
"Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu pra sempre."

Penso e sinto como Miguel Sousa Tavares.

Parabéns pela escolha do texto e por sua sensibilidade.

The dream: o sax que embala sonhos


"The dream" é uma das minhas músicas preferidas, e também um dos maiores sucessos do saxofonista David Sanborn. Ele nasceu em 30 de julho de 1945,em Trampa, Florida, mas cresceu em Kirkwood, Missouri e é o saxofonista norte-americano mais comumente associado com smooth jazz.

Sanborn sofria de poliomielite em sua juventude e começou a tocar o saxofone por conselho do seu médico, para fortalecer os músculos do tórax enfraquecido e melhorar a sua respiração. Ele tem sido um músico altamente requisitado desde o início da carreira, na década de 1960.

David começou sua carreira profissional como membro da banda de Paul Butterfield's. Uma das suas primeiras gravações foi no álbum Young Americans, de David Bowie. Nessa época, o saxofonista ganhou fama e nos dez anos seguintes tocou para uma deslumbrante variedade de artistas, como Stevie Wonder, Marcus Miller, Paul Simon, Jaco Pastorius, o Brecker Brothers, Bob James, James Taylor, Al Jarreau, George Benson, Donny Hathaway, Elton John, Gil Evans, Carly Simon, Billy Joel, Roger Waters e Steely Dan.

Paralelamente à sua carreira como músico de jam session, Sanborn tornou-se um dos mais vendidos e respeitados instrumentistas dos últimos quarenta anos, ganhando vários prêmios, incluindo Grammys por "Voyeur (1980)" e "Straight to the Heart". Ao longo da sua trajetória, David sanborn tem contornado as bordas do free jazz. Na sua juventude ele estudou com Roscoe Mitchell e Julius Hemphill.
No panteão dos deuses da música, ele se nivela com Miles Davis, Lou Reed, Santana, Youssou N'dour, Curtis Mayfield, dentre outros gigantes.

Comments

Luxúria Sunday, August 30, 2009 10:19:25 AM
Bom gosto. Linda música.
Maria José SáMariazeze Sunday, August 30, 2009 11:15:16 AM
Obrigada, você também tem bom gosto.
Edmundo Galiza MatosEGMatos Thursday, December 3, 2009 1:48:11 PM
Oi Maria.
Sou moçambicano. Jornalista da Rádio Moçambique, empresa pública, baseada em MAPUTO, a capital de Moçambique.
Li a pequena notícia sobre o DSanborn. Não desgosto dele. É daqueles que se ouve quando, por qualquer motivo, nos sentimos mortificados. O que não concordo é incluir o David Sanborn numa lista que inclui MILES DAVIS. Isso, minha cara amiga, não concordo. O Davis é qualquer coisa que ficará para sempre na história da música universal.
Mas.... tudo bem.
Já agora: O David Sanborn tem um disco feito em parceria com Bob James. Uma das faixas mais bonitas chama-se ..... MAPUTO???? já procurei conhecer alguma relação entre aqueles dois e a capital do meu país. Estás em condições de me esclarecer?
Edmundo Galiza MatosEGMatos Thursday, December 3, 2009 1:50:15 PM
Já agora Maria.
Se precisares de qualquer coisa do meu país: música, livros, etc..... não exite.
eagmatos@gmail.com

Maria José SáMariazeze Thursday, December 3, 2009 2:20:17 PM
Obrigada pela visita. Sou apaixonada pela cultura africana, de onde vem as raízes da cultura brasileira. Tenho interesse em estabelecer um intercâmbio cultural, sim, obrigada pela oportunidade.
Gosto muito de David Sanborn e "The Dream" é uma das minhas músicas preferidas, mas não a relaciono com momentos "mortificantes", pelo contrário, ela me transmite paz de espírito.
Amo Miles Davis, principalmente a leitura que ele fez do "Concierto de Aranjuez", a introdução é celestial.
Talvez eu tenha me empolgado na comparação, mas acho o Sanborn genial também. Direito meu...
Vamos nos falando.
beijo brasileiro

How to use Quote function:

  1. Select some text
  2. Click on the Quote link

Write a comment

Texto do maestro brasileiro Élcio Rodrigues de Sá (foto), meu primo querido, compositor e mestre em violão. Ele é casado com a violonista panamenha Teresa Toro e mora no Panamá há 18 anos, onde leciona na Faculdade de Música da Universidad de Panamá.


“Gracias a la vida” la escuché, y fue como “volver a los diecisiete”...

Finalmente la gran cantante argentina, Mercedes Sosa, ha encontrado su descanso. Vivió quizá una de las épocas más dramáticas de Latinoamérica, y las canciones que tenía el buen gusto de presentar siempre reflejaban la vida real, los sentimientos reales, las alegrías y sufrimientos reales de los diferentes pueblos que la conforman.

Las dictaduras supuraban abiertamente en nuestras tierras alrededor de los años 60-70 – poco antes, poco después – y nos parecían durar una eternidad. Los gorilas-buitres imponían el orden social que deseaban bebiendo la más pura y real sangre que vertían de las violentadas venas de América Latina.

Mientras, del lado de los pueblos se hacía escuchar una potente voz que reflejaba tantas injusticias cometidas, tantas ansias de libertad, tanta poesía lírica creada bajo la ignominia de las opresiones. Era la Mercedes, por supuesto que junto a sus selectos amigos, pero al escucharla nos olvidábamos de los compositores, los hábiles guitarristas, percusionistas, etc. Todo era La Mercedes...

Venía del pueblo, cantaba del pueblo y para el pueblo. A los dictadores y sus acólitos les incomodaba muchísimo la consciencia sonora que resonaba desde y a través de aquella mujer especial; la persiguieron con estilo y método, obligándola a moverse por todo el continente y más allá, para lograr sobrevivir.

Y moverse le resultó en éxitos, saltando por sobre exilios y diásporas, porque las emociones que vibraban a través de su particular voz en un momento sonaban ásperas y tierra, en otro tejían cariños de terciopelo sobre la piel, y eran tiernas.

No habrá como olvidarte, Mercedes Sosa, ni por las calles de nuestras urbes desenfrenadas, ni en las perfumadas veredas de las llanuras, siquiera en la soledad de los enigmáticos desiertos, como tampoco en las empinadas vertientes de las alturas.

Por todos los rincones anduviste esparciendo el polen de sus canciones, tanto que te escucho al alzar de una hoja en el camino, al recostar la cabeza al fin de un día más de vida, al asistir el rebrote de fuerzas que toman como suyo lo ajeno.

“Sólo le pido a Dios que la guerra no nos sea indiferente”, y que podamos honrar a tu memoria viviendo consecuentemente.

Panamá, 4 de octubre de 2009.
[/SIZE]
http://elciosa.webs.com/apps/blog/

Minhas reverências para Gay Talese

Mister Talese,
Que delícia ouví-lo falando sobre jornalismo, no programa Roda Viva, da TV Cultura! Leio seus textos e sou sua fã! Eu queria ser igual o senhor, “quando crescer”, e continuo querendo. Infelizmente, para se fazer o jornalismo que o senhor propõe é preciso ter condições de trabalho.
Já me aconteceu de sair da redação com cinco pautas em diferentes pontos da cidade, quase que simultaneamente, com o trânsito caótico, e depois ter que redigir tudo, correndo contra o tempo, “no pau do fechamento”, como diz minha colega Dorothy Menezes. Ao ler o jornal, na manhã seguinte, vem a ressaca moral: eu poderia ter escrito melhor, deveria ter revisado com mais calma e corrigido isso e aquilo... Mas, como? O relógio não para de correr! Isso sem falar no barulho infernal da redação na hora do fechamento.
E, às vezes, o próprio editor mexe no texto do repórter, mudando para pior...
Acredito que o jornalismo não deva ser só literatura, mas deve ter elementos literários, deve ter sentimento, verdade. Dentro das minhas limitações, vou tentado... Confesso que não gosto de textos exageradamente metafóricos, o leitor se confunde. Entretanto, “pitadas” de metáforas, em doses certas, enriquecem infinitamente o texto jornalístico. Também gosto de lead... Acho que é preciso deixar claro sobre o que se está falando.


Vibrei quando o senhor disse que não usa internet e que os releases atrapalham o repórter, que se acomoda com dados oficiais e não busca a notícia por outros ângulos. Concordo com o senhor e sinto pena das novas gerações de jornalistas, excessivamente dependentes da tecnologia e carentes de criatividade,cultura e sensibilidade.
Meu tio Hélio Sá, 84 anos, sempre diz que não estudou jornalismo, porque “na época dele” não existia escola para isso. “Me formei jornalista nas ruas de São Paulo”, ele costuma dizer. Eu estudei jornalismo na Universidade Federal de Goiás,mas me formei nas ruas e esgotos de Goiânia.
Assim como o senhor, sei que o encantamento do jornalismo é justamente andar pelas ruas com olhos bem abertos para a vida.
Observo que no meio do povo há histórias incríveis, mas para quem não tem preconceito. São tesouros encontrados por quem ouve a linguagem do seu povo. E todo bom repórter deve ser povo e ter sabedoria para ouvir e contar histórias.
Não se faz reportagem dentro de uma sala com ar condicionado. A riqueza dessa profissão maldita está em um dia poder tomar café em xícara de ouro num palácio, e no outro, água suja em latinha de massa de tomate, num barraco;
conversar com freiras, e com prostitutas;
com doutores tolos, e com analfabetos cheios de sabedoria;
com madames endinheiradas, arrogantes e vulgares; e com donas de casa pobres, humildes e elegantes;
com mulheres que ganham a vida trabalhando honestamente, e outras que engravidam para tirar dinheiro de homens burros que só olham a bunda, sem analisar o cérebro...
São os contrastes dessa vida.
Riquíssima vida para quem sabe se confrontar com ela.
Mister Talese, já faz muito tempo que o senhor é o meu mestre.
Aceite as minhas reverências!
Maria José Sá

* Gay Talese is a North American journalist, one of the creators of literary journalism. He works in "The New York Times

Laços - R.D.Laing

"Eles estão jogando o jogo deles.
Eles estão jogando de não jogar um jogo.
Se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão,
quebrarei as regras do jogo
e receberei sua punição.
O que devo, pois, é jogar o jogo deles,
o jogo de não ver o jogo que eles jogam.
"
[/SIZE]
R.D. Laing

*Ronald David Laing (07 de outubro de 1927 - 23 de agosto, 1989) - psiquiatra inglês que escreveu extensivamente sobre a psicose. Influenciado pelo Existencialismo de Sartre, Laing foi contra a ortodoxia psiquiátrica da época, mas rejeitou o rótulo de ter sido criador da antipsiquiatria

O angustiante "Ensaio sobre a cegueira"


Acabo de assitir, em DVD, a adaptação cinematográfica de "Ensaio sobre a cegueira", do escritor português José Saramago, o único prêmio Nobel de Literatura em língua portuguesa, até hoje. Estou tão chocada com a obra, que senti necessidade de compartilhar.
Foi o próprio Saramago quem melhor definiu seu texto, publicado em 1995 e traduzido para diversas línguas: "Este é um livro francamente terrível, com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento, e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso."
Ao longo de sua vida, Saramago resistira em ceder os direitos sobre seus livros para o cinema.No entanto, em 2008, uma adaptação de Ensaio sobre a Cegueira foi lançada, dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles. O filme obteve mundialmente críticas mistas, dividindo opiniões. No entanto, o longa-metragem agradou Saramago imensamente. O escritor disse a Meirelles "estar tão feliz de ter visto o filme, como estava quando acabou de escrever o livro". Em outra declaração, ele disse que "agora conhecia a cara de suas personagens."
O autor faz uma intensa crítica aos valores da sociedade. A cegueira é usada como metáfora, que representa a escuridão que habita o interior do ser humano. A crise gerada pela cegueira coletiva leva á violência e total destruição dos valores e do respeito mútuo. Em "O Mal-Estar na Civilização", Freud conclui que "a evolução das sociedades humanas não é nada mais do que a representação do conflito entre os instintos de vida e de destruição presentes no homem", o que foi evidencializado nessa intrigante obra de Saramago.
De forma intensa e sofrida, são mostradas as reações do ser humano às necessidades, à incapacidade, à impotência, ao desprezo e ao abandono. Leva-nos também a refletir sobre a moral, costumes, ética e preconceito através dos olhos da personagem principal, a mulher do médico, que se depara ao longo da narrativa com situações inadmissíveis; mata para se preservar e aos demais, depara-se com a morte de maneiras bizarras, como cadáveres espalhados pelas ruas e incêndios; após a saída do hospício, ao entrar numa igreja, presencia um cenário em que todos os santos se encontram vendados: “se os céus não vêem, que ninguém veja”…

Os meus livros


Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim.
As vozes desses mortos dir-me-ão para sempre.

Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda"

Para RB: Mary e Max - Uma amizade diferente


"Mary e Max - Uma amizade diferente" é uma animação australiana de 2010, para adultos, que ocupa lugar de destaque na minha seleta e imensa lista de filmes inesquecíveis.
O roteiro é um mergulho visceral na natureza humana. Temas pesados como solidão, medo, autismo, complexos, neuras, carências, autoestima, desemprego, suicídio, obesidade e a infinita busca sabe-se lá do quê, são abordados pelas personagens numa amizade profunda e verdadeira, por meio de cartas! (ainda não existia email na época rssssss)
Ao longo da animação, Mary e Max se humanizam a ponto de não os vermos mais como bonecos de massinha. É uma viagem envolvente e perturbadora.
A história tem início em 1976. Mary Daisy Dinkle, uma menina australiana de 8 anos que mora num subúrbio de Melbourne, escreve uma carta aleatória para Max Horovitz, que mora em Nova York. O judeu americano de 44 anos de idade, gordo, solitário e desempregado encontra conforto nas palavras da amiga distante. Mary e Max descobrem paixões em comum, entre elas o chocolate, e se correspondem por duas décadas.
O genial diretor australiano Adam Elliot enfatiza duas cores: marrom para o mundo de Mary e cinza no universo de Max. Às vezes aparece o vermelho em bocas e adereços.
Sem sombras de dúvida uma obra de arte, um filme para recordar.
*Ofereço esta postagem ao meu amigo distante (imaginário?) RB

http://www.filmesonlinegratis.net/assistir-mary-e-max-uma-amizade-diferente-dublado-online.html

Acordes

"Eu diria que não vejo nada e que não sei.
Algo está suspenso. A hora repousa.
Eu quero estar vivo como uma ferida, como um signo,
não mais do que um rumor de coisa nua.
Neste momento nada é confuso e opaco.
Os labirintos são trémulos, transparentes.
Dir-se-ia que atravesso um jardim e toda a vida
repousa entre as forças da cinza
e o fulgor da chama. E adormeço
sentindo a beleza e o tempo, o mesmo arco
iluminado."

António Ramos Rosa, in "Acordes"
*O grande poeta português Antônio Ramos Rosa faleceu ontem, 23 de setembro de 2013

Lembranças de um Natal

Céu estrelado, noite fresca, chuvinha fina, o cheiro das flores e o barulho da cachoeira se misturando com a linda voz de Ana Belén, que ecoava nas inúmeras caixas de som. Foi a primeira vez que ouvi esta versão de Planeta Água em espanhol.
Era noite de Natal e eu estava numa chácara maravilhosa, com amigos queridos. Tinha tido um dia cansativo no jornal, depois fui em casa, me arrumei, meus amigos me pegaram. Passamos em uma comunidade carente e distribuímos brinquedos e comida, que tínhamos comprado com nosso dinheiro.
Quando chegamos na chácara, estava tudo tão bonito e tranquilo que todo o cansaço foi recompensado.
Faz exatos 18 anos e me assusto com a rapidez com que o tempo tem passado!
Fico pensando em tudo que aconteceu depois dessa noite mágica. Vieram sucessivos natais amargos, pontuados por muitas perdas. Meu pai, meu irmão e alguns amigos amados partiram no Natal, inclusive a dona da chácara. Cada um num ano.Já passei natais em hospitais e velórios. Não há como gostar mais desta data.
Ano passado meu Natal foi muito amargo. Passei sozinha, na cama, sem poder andar, não conseguia nem ler, porque a medicação deixava as vistas turvas.
Este ano estou feliz por poder andar, após 1 ano e meio de sofrimento.
Continuo não gostando de Natal, mas estou realmente muito feliz por poder voltar à vida em 2013. E vida pra mim é trabalho e estudo, o resto é ilusão e ilusões trazem sofrimento...
Senti saudades destes amigos queridos que não vejo há anos. 

Jaya sri Ravi Shankar! ki jay!

O lamento do sítar se faz mais sentido com a passagem de Ravi Shankar para o plano espiritual.
Na década de 60, o Oriente invadiu o Ocidente com a mudança dos indianos Srila Prabhupada e Ravi Shankar, entre outros, para os Estados Unidos. Seduzido pelos ensinamentos de Srila Prabhupada, que trouxe a Bhagavad Gita, e pela música transcendental do mestre Ravi Shankar, o beatle George Harrison foi um dos principais divulgadores da cultura hindu.
Tanto a música clássica indiana, as Ragas, quanto a música religiosa devocional, os kirtans e mantras, continuam tocando profundamente o coração dos ocidentais que buscam elevação espiritual.
Existem inúmeras formas de meditação mas, sem sombra de dúvida, é através da música, ou do mais profundo silêncio..., que o homem mais se aproxima de Deus. Assim como muitas músicas clássicas - como as de Bach, por exemplo- a música indiana eleva a mente, transcendendo as barreiras do mundo material.
Quem já experimentou a espiritualidade hindu, seja por Krishna, Budha, Yogananda, Sai Baba, Osho ou outros mestres, não consegue se desligar completamente dos ensinamentos, por mais que se afaste deles.
Só pode me entender quem já fez alguma "viagem transcendental" ouvindo música oriental. A mente se acalma e por instantes se desliga do barulho deste mundo doente. Os indianos trouxeram para o ocidente a mensagem tão bem compreendida e difundida pelos Beatles: "All we need is love."

* Na foto, Ravi Shankar e George Harrison.
 
BlogBlogs.Com.Br

Não somos atores de um drama: somos o próprio drama

"Todo este mundo quotidiano e visível, toda esta gente que boia à superfície da vida, todas estas coisas que constituem os nomes e os feitos da história não são mais que erro e ilusão.
Somos todos, não agentes, senão agidos-títeres de maiores que nós.
Todo o nosso orgulho de conscientes e a nossa soberba de racionais são o títere que se orgulha de seus gestos.
Na verdade o combate é aqui, mas não é nosso; não é conosco, somos nós.
Não somos atores de um drama: somos o próprio drama – a ante-estreia, os gestos, os cenários.
Nada se passa conosco: nós é que somos o que se passa." (Fernando Pessoa)