segunda-feira, julho 24, 2006

Uma noite na fila da esperança

Maria José Sá

Mais de dez mil pessoas passaram pela fila formada no Ginásio de Esportes de Campinas, nos últimos dias, na esperança de conseguir um emprego no Carrefour Cascavel, que oferece 480 vagas. Passei a madrugada de ontem nessa fila, onde ouvi histórias e tive oportunidade de compartilhar as angústias, incertezas e principalmente a esperança de centenas de brasileiros desempregados e desesperados. Tinha de tudo, desde quem chegou em carro importado e esnobou todo mundo, até quem veio de outros municípios com o dinheiro da passagem contado, sem agasalho e sem alimento, mas com vontade de trabalhar.

O primeiro da fila era o tapeceiro desempregado João Batista Nunes, 44. Ele mora no Setor Garavelo, em Aparecida de Goiânia, e chegou às 16h30 para guardar o lugar do filho de 20 anos, que cursa o 2º grau e chegou na manhã seguinte. João está desempregado há mais de 1 ano e o filho, há oito meses. Sua esposa não trabalha e eles têm mais um filho, de 10 anos. João diz que a família vive de bicos. “Eu e meu filho mais velho capinamos lotes, fazemos serviço de chapa, de eletricista e de encanador. Vamos nos virando como podemos, um dia tem serviço, noutro não.” Franzino, João passou a noite deitado em papelões com uma garrafa de água e um saco de pipocas “para quando a fome apertar”.

Tentando a sorte
A maranhense Andréia Oliveira, 22, é técnica em edificações, está desempregada há três meses e veio tentar a sorte em Goiânia, onde tem apenas uma amiga. “Saí de Imperatriz com a cara e a coragem. Aqui estou trabalhando numa banca de roupas e comida na Feira Hippie, onde ganho mais ou menos R$ 100 por semana. Estou me inscrevendo para operador de caixa. Parece que o salário é de R$ 410. Se conseguir, quero continuar na feira aos domingos.”

Na fila do Carrefour a maranhense conheceu seu segundo amigo goiano, Weber Gomes Ferreira, 21. Ele mora no Bairro Capuava, tem o 2º grau e é vendedor em uma papelaria, onde ganha R$ 360 mensais. O rapaz se inscreveu para o cargo de repositor e não sabe qual é o salário, mas acredita que seja um pouco mais do que ganha atualmente.
Em busca de vida melhor
A auxiliar de enfermagem Silvoneide Pereira de Britto, 31, que também passou a noite ontem na fila do Carrefour, deixou o trabalho de agente comunitária no Programa Saúde da Família (PSF) em Aparecida de Goiânia, onde mora, para procurar algo melhor. “Eu trabalhava oito horas por dia, ganhava um salário mínimo e não tinha tempo para procurar outra coisa. Meu marido é gari, tenho três filhos pequenos e vou me inscrever para qualquer coisa. Preciso de emprego com urgência.”

Marcos Roberto de Souza, 23, já trabalhou no CPD de outro grande supermercado, onde ganhava R$ 240 por mês. “Estou desempregado há dois meses, vou me inscrever para qualquer coisa.” Cristian Rodrigues Alves, 24, é professor de axé e dança de salão numa academia em Goianira, onde mora, e ganha menos de R$ 400. Ele veio de ônibus e também não sabe para o que vai se inscrever. “Qualquer coisa serve. O que tocar, estou dançando.” Maria de Lurdes Nascimento, 42, mora em Trindade e pegou três ônibus. Ela era auxiliar de escritório, tem um filho de 4 anos e está desempregada há três anos. O marido é repositor e ganha R$ 400. Ela se desespera e desabafa: “Só vim para não dizerem que não tentei”.

O calor humano aumenta à medida em que a temperatura cai. Embrulhados num cobertor e encolhidos sobre pedaços de isopor, Elisângela Pereira da Silva, 26, e o marido, Anderson Clayton Santana, 28, passaram a noite abraçados e planejando um futuro melhor para o filho de 3 anos. Ele é professor pró-labore numa escola do Jardim Curitiba e veio fazer companhia à esposa, que está desempregada.

Solidariedade aparece no frio da madrugada

É quase meia-noite na fila por emprego no Carrefour. O frio vai chegando, a noite vai passando e o povo se acomodando em colchonetes, jornais e papelões. A cada segundo aparecem mais candidatos. Alguns de carro, outros nos últimos ônibus, de bicicleta ou a pé. Todos na mesma situação, e o grupo acaba desenvolvendo uma harmonia impressionante.

Os “vizinhos de vaga” logo começam a dialogar. Os assuntos são variados. Alguém liga um radinho de pilha e os torcedores do Goiás se juntam para ouvir o final do jogo com o Corinthians. Não tinha banheiro disponível por perto, mas a galera não se apertou, deixou a vergonha de lado e literalmente “molhou as árvores” e os cantos escuros dos muros...

Começam a madrugada e as demonstrações de solidariedade. A maioria se acomoda no chão e quem tem cobertores sobrando agasalha quem não tem. O lanche também é dividido e o papo corre solto no friozinho. Um grupo animado se diverte jogando caixeta. O prevenido Wellington Rodrigues, 20, candidato ao cargo de repositor e desempregado há dois meses, levou o baralho na certeza de encontrar “uma turma legal”. Em poucos minutos, o grupo estava formado.

Duas mulheres surgem com um colchão de casal, cobertores, travesseiros e três crianças. Tratam-se de Vanessa Ferreira, 21, e sua torcida, formada pela tia e os primos de 7, 9 e 11 anos respectivamente, que vieram dar apoio moral. Para as crianças tudo é festa, mas Vanessa é técnica de informática e saiu do emprego há dois anos quando teve sua filha. “Pedi demissão para cuidar do bebê e agora não consigo reingressar no mercado.

Solidário, o estudante de Artes Cênicas da UFG Cleodon Neto, 25, surge com uma garrafa de café e copos de plástico. Ele é vizinho do ginásio e também está na fila. Uma cabeça branca se destaca na multidão. É o aposentado Domingos Alves Castro, 72. Ele mora no Goiânia 2 e veio segurar lugar para o neto Dérik, 21, que é técnico de computação e está desempregado. Com pouco agasalho, quando o frio aperta, Domingos demonstra cansaço em sua face, enquanto o neto dorme em casa.
Cada candidato trazia o brilho da esperança no olhar. Naquela noite gelada a maioria era de gente humilde. E um verso de Chico Buarque me vem à cabeça: “Que vontade de chorar”.
* Matéria publicada no Diário da Manhã em 18/7/2003 - Economia
Logo após a publicação desta matéria, a rede de supermercados Carrefour decidiu receber currículos para seleção pelo correio, sendo que somente seriam chamados para entrevista os currículos pré-selecionados, evitando assim, a formação de filas para inscrição ao processo seletivo.

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