
Graça e leveza marcam a dança de um grupo animado. Harmonicamente, os movimentos acompanham as nuances da música, ora suave, ora vigorosa. O espetáculo de rara beleza emociona os espectadores, que não contêm as lágrimas diante tamanha mostra de sensibilidade. Os bailarinos são deficientes auditivos e a maioria também sofre com algum nível de deficiência mental. Eles são internos do Asilo São Vicente de Paula, na Cidade de Goiás.
Há cinco anos, duas vezes por semana, o dançaterapeuta italiano Pio Campo ensina dança aos moradores do asilo, utilizando o método desenvolvido pela bailarina argentina Maria Fux. “O método internacional Maria Fux propõe mudanças por meio do movimento criativo, qualquer que seja a condição física ou psíquica. E ajuda a encontrar motivações para se aceitar, ter confiança e crescer.”
“Utilizamos a dança para sair da solidão, do isolamento, dos esquemas rígidos criados à nossa volta. Dançamos para aceitar as diferenças e descobrir a riqueza de quem é diferente. A dança que nasce na aparente imobilidade de quem está na cadeira de rodas, no silêncio de quem não ouve, no escuro de quem não reconhece o seu corpo. Dançar para dizer: sim, posso. Dançar para viver.”
Para desenvolver seu trabalho, Pio utiliza mímica e alguns objetos, como cadeiras e um elástico, para se comunicar com o grupo. Os movimentos são sincronizados e é difícil acreditar que aquelas pessoas não estejam ouvindo a música. De acordo com o especialista, na dançaterapia para deficientes auditivos o movimento nasce no mundo que os rodeia. “Utilizamos a música silenciosa que está escrita ao nosso redor. O silêncio é cheio de formas e pode ser dançado.” Os 30 bailarinos de Pio têm a expressão leve, são sorridentes, e cada um se comunica através de uma linguagem própria, desenvolvida de acordo com suas limitações. Assisti-los é um privilégio e uma lição de vida.
Freira é a mãe de todos
O Asilo São Vicente de Paula existe na Cidade de Goiás desde 1909 e atualmente tem 106 internos idosos. Cada doente traz consigo uma história de dor e abandono. Todos foram rejeitados pelas respectivas famílias e a maioria foi acolhida pela freira
Gabriela Guedes Coelho, que faleceu há 23 anos, deixando em seu lugar a dominicana Maria Aspásia Lisboa.
Irmã Aspásia, atualmente com 74 anos, não tira férias há 23 anos, desde que assumiu a direção do asilo. E nem pode, pois ela é a mãe de todos os internos. Na maior parte do tempo sozinha, ela ensinou aos portadores de deficiências leves a tomarem conta dos casos mais graves. “Eles me ajudam. Os menos doentes dão banho, vestem e penteiam os cabelos dos que não têm condições de se cuidar sozinhos.”
Ao fugir de casa para ser freira, a adolescente mineira não imaginava que tantas pessoas dependeriam do seu amor para sobreviver. Nos últimos 53 anos, irmã Aspásia morou em vários Estados e era diretora do convento do Rio de Janeiro quando a amiga Gabriela a convidou para conhecer a Cidade de Goiás. “Ela me apresentou aos pacientes e me ensinou como administrar o asilo. Dois meses depois, Irmã Gabriela faleceu, vítima de câncer, e tive que assumir o seu cargo. Minha vida mudou radicalmente.”
A freira ressalta que seus pacientes são especiais. “Eles não são abandonados, são de Jesus. Para manter a harmonia do asilo, o segredo é a higiene rigorosa e a boa alimentação, por isso, eles raramente adoecem.” O amor de irmã Aspásia e dos voluntários também é fundamental, tanto que nenhum dos internos precisa tomar medicamento forte. “Eles são excepcionais, mas têm sentimentos nobres.”
A solidariedade dos voluntários é um dos fatores que contribuem para o sucesso do trabalho de irmã Aspásia. “Temos artistas, professores e pessoas da comunidade que, além de ajudarem com doações materiais, desenvolvem diversas atividades recreativas e artesanatos. O trabalho do Pio, por exemplo, é maravilhoso e tem trazido inúmeros benefícios para o desenvolvimento deles.” Um grupo de voluntárias confecciona belas bonecas de pano que se parecem com Cora Coralina e são comercializadas para ajudar nas despesas da entidade. Dentre muitos outros, o empresário Leonardo Rizzo e o médico Fernando Cupertino de Barros, atual secretário de Saúde do Estado, são alguns dos grandes colaboradores do Asilo São Vicente de Paula.
São muitas as histórias tristes, como a de uma idosa que, além da deficiência mental, ainda é paralítica. Quando era jovem, para escondê-la, a família a deixava o dia inteiro dentro de um buraco cavado no chão. Com isso, suas pernas atrofiaram. Apesar de viver na cadeira de rodas, hoje ela tem uma expressão leve e acompanha a música movimentando os
braços e as mãos.
Irmã Aspásia não tem espaço e nem condições financeiras para aceitar novos doentes. Quem quiser ajudar o asilo, doações de alimentos, produtos de higiene e limpeza, e roupas são bem-vindas. Atualmente a freira sonha em ganhar uma máquina de fazer fraldas geriátricas. “O consumo de fraldas é grande e elas custam muito caro. Se tivermos uma máquina, poderemos confeccionar as fraldas; com isso, economizaríamos muito.”
No último domingo de cada mês, a freira promove um almoço comunitário com os colaboradores da instituição. “São mais de 50 famílias, e cada pessoa traz um prato. A banda da PM toca alegres músicas dançantes, e todos se divertem; é uma alegria para nós.” A incansável irmã Aspásia é alegre, cheia de vida e tem muita disposição para o trabalho. “Gosto muito daqui. Nosso universo é muito bonito e aqui estamos protegidos do mundo lá fora.”
*Matéria publicada no jornal Diário da Manhã - DM Revista - em 06 de abril de 2003
Obs. 1 - Uma pessoa se comoveu com a reportagem e doou a máquina de fazer fraldas para o Asilo São Vicente de Paula, no dia seguinte à publicação, mas me pediu para não ter seu nome divulgado.
2 - Irmã Aspásia Lisboa faleceu no último Natal (dezembro de 2005). Teve uma parada cardíaca enquanto dormia, e os doentes sentiram muito. A ordem Dominicana enviou três freiras para continuarem o trabalho de irmã Aspásia.
3 - Esta reportagem percorreu diversos lugares e foi parar até no convento das Domincanas na Itália. Também foi indicada para o Prêmio Ethos de Jornalismo, não venceu, mas conseguiu ter destaque entre as melhores reportagens da Região Centro-Oeste, do ano de 2003.