sábado, dezembro 28, 2013

Canção do Amanhecer

Thursday, September 10, 2009 10:35:41 AM


Prelúdio

“Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar o rio da vida – ninguém, exceto tu, só tu.”
Nietzsche



O que existe por trás daquele muro? O que é loucura? O que é ser normal? Quem são eles? Quem sou eu? Diariamente estas perguntas me atormentavam quando eu passava em frente ao Complexo Psiquiátrico Adauto Botelho. 
Em busca de algumas respostas, durante o ano de 1991, participei de um grupo de estudos formado por alunos e professores da Faculdade de Psicologia da Universidade Católica de Goiás, sob a coordenação do professor Northon Godinho Leão. Tive a oportunidade de ler, e compreender, inúmeras obras de psicologia. Nesse período também aprofundei os estudos em Filosofia e me apaixonei perdidamente por Nietzsche.

No início de 1992, durante férias em São Paulo, visitei o Projeto Tam-Tam, em Santos. Fiquei encantada com o trabalho realizado sob a coordenação do arte-terapeuta Renato Di Renzo. Os pacientes comandavam a Rádio Tam-Tam, que à época tinha o maior índice de audiência na cidade. Uma equipe profissional multidisciplinar desenvolvia inúmeras atividades artísticas e tinha até um grupo de teatro. Lembro-me que o maior sucesso era um paciente que imitava, com perfeição, o jornalista Gil Gomes, que na sátira se chamava “Gel Gomes”. Era muito engraçado e o grupo fazia sucesso.
No último ano do curso de Jornalismo, na UFG, tínhamos que desenvolver um projeto de Comunicação Comunitária, em grupo. Com sólido embasamento teórico e grande curiosidade, eu quis fazer meu projeto na comunidade do Complexo Psiquiátrico Adauto Botelho. 
A professora de Comunicação Comunitária, Silvana Coleta, prontamente aceitou a proposta, mas nenhum colega quis me acompanhar (disseram que era loucura...). Após reunião da professora com a direção do Hospital, foi decidido que eu trabalharia durante aquele ano (1993), com um grupo de 16 pacientes esquizofrênicos do Hospital-Dia. Eles ficavam na instituição das 8 às 17h, de segunda à sexta-feira, onde eram medicados e desenvolviam algumas atividades ocupacionais, como a confecção de tapetes. 
Do início de abril a dezembro de 1993, eu passei todas as manhãs de sexta-feira no Hospital-Dia, que era anexo ao hospício. Então, parti para minha missão solitária, até o momento, a mais emocionante da minha vida.

Alvorecer
“Na solidão, o solitário se devora a si mesmo; na multidão, devoram-no inúmeros. Então, escolhe.”

Redigi um projeto de rádio comunitária, uma versão mais modesta da Rádio Tam-Tam. Entretanto, no primeiro contato com meu grupo, levei um choque. Deparei-me com pessoas inertes, sem vida. Eles estavam sentados nos bancos, sonolentos (pelo efeito da medicação), não se comunicavam e nem esboçavam vontade de participar de qualquer atividade. Naquele momento, o silêncio gritava mais alto, porque a situação falava por si.

Compreendi que os intelectuais teorizam sobre teorias, criando um mundo envolto em uma densa rede de palavras elegantes que embaçam a visão da realidade concreta que nos rodeia. Senti que estava sozinha e tive medo de não conseguir me comunicar com meu grupo. Passei a semana imaginando uma forma de acordar aquelas pessoas que vivenciaram grandes sofrimentos e estavam em profunda solidão. Entendi que para transpor a barreira, eu teria que me desprender dos meus (pré) conceitos. Decidi compartilhar com eles a grande paixão da minha vida: a música.Como não podia imaginar o gosto musical dos meus novos companheiros, enchi duas sacolas com LPs (aquelas bolachas enormes de vinil, porque ainda não tinha CD) de diversos estilos, que eu tinha em casa. No Hospital-Dia havia uma vitrolinha. Na sexta-feira cedo, embarquei ansiosa no ônibus do Campus, carregando as duas sacolas cheias de discos. Meu “insight” foi genial. Quando espalhei os discos pelo chão, todo mundo queria ouvir música. Cada um escolheu seu disco e fomos ouvir, cantar e dançar. A direção do Hospital-Dia nos deixou à vontade e, a partir daí, todos os nossos encontros foram festivos. Até hoje guardo esses LPs com carinho, mas não consigo ouvir as músicas que usávamos, porque lembro de cada paciente e um nó aperta minha garganta.Meu grupo era dócil mas, na maior parte do tempo, eles se desligavam do mundo e pareciam sonolentos, provavelmente pelo efeito dos remédios. Quando entravam em surto, eram internados. Cheguei a visitar alguns em crise. Foi horrível! Criaturas amáveis transformavam-se completamente. Não reconheciam ninguém, eram “enjaulados”, gritavam e ficavam nus para não se enforcarem com as próprias roupas. Semanas depois, retornavam para o grupo, tranquilos como se nada tivesse acontecido.
Canção do Amanhecer

“O valor da vida não pode ser avaliado”


Cada membro do grupo escolheu uma música para si. Como no hospital não tinha lugar para guardar os discos, toda sexta-feira eu pegava o ônibus com as duas sacolas. No quarto encontro, decidimos brincar de rádio. Sem nenhum recurso, a brincadeira era assim:
O Romário foi eleito para locutor. Ele sentava ao lado da vitrola e começava a conversar com os “ouvintes”. Uns liam trechos de revistas, outros inventavam. Na conversa, eles pediam a música que gostavam, a música tocava e, em seguida, outro ouvinte “entrava no ar”. Minha função era segurar meu gravador durante as conversas e colocar as músicas pedidas na vitrola. Assim nos divertíamos bastante. 
Fizemos votação para escolher o nome da nossa “emissora” e o mais votado foi “Rádio Canção do Amanhecer”, sugerido pelo Zé Élio, um rapaz de 19 anos, muito inteligente, bonito e que havia estudado até a 6ª série. Todas as vezes que eu chegava ao Hospital-Dia, meus amigos estavam me esperando na porta. Eles passavam a semana ensaiando a participação na nossa rádio, viam revistas, trocavam idéias e sempre tinham novidades para contar. Me afeiçoei ao grupo e resolvi comemorar os aniversários do mês. 
Na última sexta-feira de cada mês, a partir de junho, além da mochila nas costas e as duas sacolas com discos, eu também carregava um tabuleiro com bolo, que eu mesma fazia na noite anterior. No ônibus lotado, era um exercício de equilíbrio... Mas o sacrifício era recompensado pela alegria na hora de cantar parabéns.
Nossas manhãs passavam cada vez mais rápido. Em dois meses, todos já se comunicavam e observei que os que tinham dificuldade para falar estavam desenvolvendo a linguagem. Eram apenas duas mulheres (a Maria, 38, e a Meire, 19) e 14 homens, por coincidência, a maioria com sobrenome Oliveira. As idades variavam entre 19 e 65 anos. Mas todos eram crianças.











Com o passar do tempo, eu sentia cada vez mais que havia ganho uma família. Era o último ano do curso de Jornalismo e eu estagiava no jornal O Popular (ganhava uma bolsa de meio salário mínimo, à época, minha única fonte de renda), portanto não tinha como passar mais tempo com meu grupo. Observei que eles eram românticos e gostavam de poemas. Um dia, distribuí papéis e canetas. Foi outra festa. Enquanto ouviam suas músicas, eles desenhavam e escreviam. Fiquei extremamente emocionada com as poesias. Mesmo sem ter muito estudo, eles deixavam brotar seus sentimentos mais profundos de maneira poética. Foi uma experiência incrível que resultou em inúmeras obras-primas. No mês de agosto decidimos lançar nossa revista, que o André Antônio batizou de “Arte é Vida”. Como não tínhamos nenhum dinheiro, a revista era assim:Eu dobrava as folhas de papel chamex no meio e as distribuía. Cada um tinha direito a uma face do papel para fazer o que quisesse. Quem não sabia escrever fazia as ilustrações. Eles iam trocando os papéis e a produção artística e literária foi maravilhosa. Surgiam as imagens mais inusitadas e belas. Fiquei surpresa com o potencial deles. Tanto os desenhos como os poemas evidenciam o “eu dividido”, a fragmentação do indivíduo, a solidão, a contradição e o sofrimento por ser diferente. Infelizmente, além de não ter dinheiro, eu também não tinha tempo e nem competência para buscar patrocínios. Dos poucos patrocínios que pedi para nossa revista, recebi “não” como resposta (um deles foi a xerox do CA de Jornalismo). Mas não me importei, as pessoas normais são insensíveis mesmo. Quando me sobravam alguns trocados, eu xerocava as revistinhas, que eram distribuídas para os pacientes e a equipe do Hospital-Dia. E sem dinheiro consegui levar meu projeto até o final do ano. Tive a grande recompensa de acompanhar a evolução do grupo. Completamente envolvidos pelas atividades da rádio e da revista, os pacientes saíram do estado inicial de paralisia diante da vida. Eles estavam cada vez mais alegres e cheios de ânimo. Também observei que a ansiedade, típica da doença, havia diminuído. Concluí que eles só precisavam de mais atenção e alguém que promovesse a comunicação entre eles. Mas a melhor parte foi a mudança que este grupo fez no meu interior. Eles me ensinaram a dimensionar a vida.No final do ano de 1993, publiquei uma matéria sobre o projeto no jornal O Popular. Embora a realidade do Hospital-Dia fosse mais amena do que a vivida pelos pacientes internos no manicômio Adauto Botelho, na matéria eu mencionei, de maneira sutil, as dificuldades pelas quais o Complexo Psiquiátrico vinha passando, como um todo. Fui proibida de continuar frequentando o Hospital. Sofri muito, pois eu amava os pacientes e imagino que eles também tenham sentido minha falta. Com essa experiência, finalmente entendi que não se deve medir forças com o poder. Foi minha primeira decepção como jornalista (depois vieram muitas outras). Comprovando que “o tempo é senhor da razão”, dois anos depois o Complexo Psiquiátrico Adauto Botelho foi demolido. Em seu lugar surgiu um moderno Centro de Reabilitação Fisioterápica, que beneficia milhares de pessoas carentes. Só ficou uma dúvida no ar: Com a demolição do Complexo Psiquiátrico, o que foi feito dos doentes mentais cujas famílias não têm condições de ficar com eles?Recentemente, tive notícias do meu grupo: alguns já morreram, outro matou a tia durante um surto e outros estão por aí...Hoje, 16 anos depois, pego a revistinha “Arte é vida” (amarelada pelo tempo, no fundo do baú) e sinto que alguma coisa valeu a pena.       (Maria José Sá – e-mail: mariajosesa1@gmail.com )

Arte é Vida


“Somente depois de teres deixado a cidade, verás a que altura suas torres se elevam acima das casas.”


Hoje não consigo pensar
Nem sequer me lembrar
De coisas que não convêm;
Pois preciso descansar, sem me concentrar.

Contudo, muitas coisas não passam desapercebidas,
Pois as vistas inquietas conseguem captar
Gestos, movimentos e coisas.

As formas às vezes requerem atenção
Pois são atraentes para ver ou sentir,
Como um quadro pintado
De rabiscos grotescos, bonitos,
Porém sofridos.
O cenário e penário, a aparência doída,
Assim é a vida.
Romário Oliveira


Desabafo

Eu tenho um problema,
Mas não me afeta
A minha vida é um tormento
O meu coração sente,
Busca inspiração
Acho só solidão
Mas eu tento e quero
Estar junto da multidão
André Antônio Martins


A Ressurreição

Não gostaria de me despedir
Mas gostaria de estar aqui
Num lugar muito distante
Que vos falo
Falo de amor
Um caminho no lugar límpido
Cheio de luz
Onde o tempo está parado
Onde a luz também está parada.

É o tempo da purificação do homem e da mulher
Deus chamou todos para a vida
É a ressurreição
Não pode haver conflito de pessoas
Existe ar para todos
O ar não se compra, ele se dá
Senti falta de ar e tive que pedir esmola para respirar.
A luz está brilhando para todos.
José Élio




Ternura

Estrela que brilha
Ilumina o espírito.
Relâmpago no céu
Com sol e chuva
Cai na minha cabeça
No chão eu caio,
Da ruína esqueço.
Levanto em outro mundo
A cura foi por Deus
Oliveira Rodrigues


A luz da vida

Que luz mais bonita
Parece ser anil.
Brilha mais que a luz da vida.
Olha a luz do eterno horizonte
Sua fonte tem esplendor
Mas escrevi isso, vai de gente.
Olha, mas que bonito é quando você brilha no caminho da floresta.
E brilha tão grande, porque tu és a bela.
E só fico olhando o caminho,
Porque tu és tão bonita.
Everaldo Oliveira dos Santos



Meu coração é meu lar
Minha visão, minha vida
Meus pés a minha salvação
Minha cabeça, a minha bússola.

Walmyr Esteu[/ALIGN]


Luxúria Thursday, August 27, 2009 10:55:00 AM
Quando a gente planta uma semente, nem sempre dá tempo de ver a árvore crescer.
Unregistered user Saturday, March 27, 2010 6:31:02 PM
Sebstião Moreira writes: Achei lindo o seu trabalho . Parabéns pelo blog e pela experiência. Daqui a alguns anos, quando a esquizofrenia estiver totalmente estudada, melhor entendida e completamente curada, iremos lembrar como os "loucos" eram tratados e ficar envergonhados como nós médicos os tratavávamos. O velho Adauto Botelho já não existe mais e agora tem aquela grande obra em seu lugar: o CRER. Assim aconteceu com várias doenças, como a tuberculose( existia até o hospital JK, ali na BR-153, hoje Hospital de Medicina Alternativa) e os doentes eram isolados da sociedade para serem tratados. Graças a essa doença perdemos o grande poeta Castro Alves aos 24 anos. O mesmo acontecia com os leprosos, que eram isolados em colônias agrícolas como a Colônia Santa Marta em Goiânia. Hoje se sabe que a hanseniase(até o nome mudou!)tem cura e os pacientes ficam em casa para terem melhor recuperação. Assim é a evolução dos homens e da ciência...
Unregistered user Thursday, April 15, 2010 5:40:22 PM
Juliana Cristina de Mello Gomes writes: Fiquei fascinada pelo seu depoimento. É incrível ver como existem pessoas com a capacidade de doar um pouco do seu tempo e de si mesmo pelos outros. Outros esses que às vezes nem conhecemos. Parabéns. No passado vc fez esse voluntariado naquele complexo e agora, no futuro eu fiz um voluntariado no CRER.


Maria José SáMariazeze Friday, October 26, 2012 9:18:28 AM
Obrigada pelos comentários. Estou passando por um momento de superação, e vocês me fizeram lembrar que alguma coisa valeu a pena nesta trajetória tão tumultuada.

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