terça-feira, maio 06, 2008

Réquiem para um amigo I - "Vê mais longe a gaivota que voa mais alto"




“Na superfície do azul brilhante do céu, tentando a custo manter as asas numa dolorosa curva, Fernão Capelo Gaivota levanta o bico a trinta metros de altura. E voa. Voar é muito importante, tão ou mais importante que viver, que comer, pelo menos para Fernão, uma gaivota que pensa e sente o sabor do infinito.
É verdade que é caro pensar diferentemente do resto do bando, passar dias inteiros só voando, só aprendendo a voar, longe do comum dos mortais, estes que se contentam com o que são, na pobreza das limitações. Para Fernão é diferente, evoluir é necessário, a vida é o desconhecido e o desconhecível. Afinal uma gaivota que se preza tem de viver o brilho das estrelas, analisar de perto o paraíso, respirar ares mais leves e mais afáveis. Viver é conquistar, não limitar o ilimitável. Sempre haverá o que aprender. Sempre.” (BACH, Richard; Fernão Capelo Gaivota)


Após um semestre inteiro estudando matérias de Humanidades, como Filosofia e Teologia, finalmente eu estudaria Citologia, a primeira matéria técnica do curso de Ciências Biomédicas, da Universidade Católica de Goiás - UCG. A expectativa era grande, primeiro pela paixão pelo mundo da Biologia Molecular, segundo pela curiosidade em conhecer o famoso professor Vasco Martins Cardoso.
Idolatrado por uns e temido por outros, o professor Vasco era um mito entre os acadêmicos de Biomedicina da UCG. Por mais de duas décadas, ele foi patrono de todas as turmas de formandos do curso. Pelos corredores da Faculdade corria a notícia de que ele só dava duas notas: dez ou zero, e o detalhe de que todas as provas eram orais contribuía para assustar ainda mais os calouros.
Acostumada com a informalidade dos professores da área de Ciências Humanas, tive um impacto quando o famoso médico entrou na sala de aula. Ele trajava a farda de coronel da Polícia Militar, era formal e tinha aparência impecável: semblante sério, postura elegante e perfume discreto. Eu tinha acabado de completar 18 anos e, naquele instante, senti que a adolescência se findava com a entrada para o mundo profissional.
Ansiosa por começar a desvendar os mistérios do mundo da ciência, outra surpresa: primeiramente o professor Vasco nos mandou ler “O maior vendedor do mundo”, de Og Mandino, e “Fernão Capelo Gaivota”, de Richard Bach. Nossa primeira aula de Citologia foi uma lição de vida. Nesta época, ainda não se conhecia o conceito de “Inteligência Emocional” e palestras e livros de auto-ajuda ainda não tinham dominado o mercado.
Lembranças
Passaram-se exatos vinte anos e, para redigir esse artigo, reli os livros indicados pelo mestre, já amarelados pelo tempo. Concluo que, se tivesse seguido os sábios conselhos desde o primeiro dia de aula, teria evitado muito sofrimento. Mas como o próprio dr. Vasco me dizia, naquela época, meu maior defeito era “a rebeldia da juventude”...
Estudar e trabalhar
Fernão Capelo era uma gaivota que queria voar alto, conseqüentemente, foi banido pelo grupo que não aceitava quem tentava fugir da mediocridade. É a história de um vencedor, aquele que venceu a dor, como o próprio Vasco. Logo no primeiro dia de aula, ele esclareceu que o mundo profissional é altamente competitivo e apenas os fortes vencem. “E não há outra saída: quem quer vencer tem que estudar e trabalhar, até o fim da vida.” E foi isto que ele fez a vida toda: trabalhou e estudou.
Assim como Fernão Capelo Gaivota, Vasco Martins Cardoso também semeou bons frutos: formou várias gerações de profissionais éticos, conscientes, atuantes e estudiosos. É claro que nem todos conseguiram vencer. Apenas os que seguiram os conselhos do mestre e aplicaram na vida os conhecimentos adquiridos com as duas primeiras leituras obrigatórias para a disciplina de Citologia, que era um ritual de passagem para a vida profissional.

4 comentários:

Eliana Silva (enfermeira) disse...

Senhora Maria,muito bom seu texto sobre o coronel Vasco.Eu o conheci na Fundação Leide das Neves ha muitos anos e conheço o trabalho que ele desenvolveu na PM e na saúde publica,especialmente no Araujo Jorge,onde trabalhei.Era um homem diferente,aparentemente sisudo mas que na verdade era carinhoso,afavel,companheiro e sempre pronto a ajudar as pessoas.Soube da morte dele em 2006,quando conheci a filha dele (Pollyanna)na secretaria de saúde.Hoje tenho muita admiracao pelos dois,pai e filha,que sao muito parecidos na educacao,no carisma pessoal e na disposicao em trabalhar e ajudar o proximo.O coronel morreu como heroi do episodio do Cesio 137 mas nao figura em nenhuma homenagem,nem nos programas de tv sobre o acidente.como voce e jornalista agora,porque nao faz uma reportagem sobre isso?Os jornais nunca o citam e ele foi o unico a questionar o governo e as autoridades sanitarias da epoca,que tentaram abafar o caso e suas consequencias.O coronel,medico e professor Vasco nao pode ser esquecido,e nem foi citado no livro Historia da Medicina em Goias.Faca justica a memoria dele,se puder.Obrigada a senhora.

Maria disse...

Enfermeira Eliana,

É com grande emoção que recebo seu email.
Gostaria de encontrá-la pessoalmente para conversarmos melhor.
O dr. Vasco foi injustiçado várias vezes, por dizer a verdade.
Lembro-me dele subindo e descendo as escadarias do laboratório (de dois em dois degraus, rsss) esbravejando contra os governantes...
No episódio do Césio 137, por ser coronel da polícia militar, lembro-me que ele foi preso no quartel por alguns dias e foi severamente repreendido, por dar declarações públicas sobre a real gravidade do acidente radioativo em Goiânia.
Como o tempo é senhor da razão, duas décadas se passaram e as profecias dele estão aí...
MAS, como jornalista, sei também o que significa amargar meses de desemprego por dizer a verdade...
E o governador daquela época é o prefeito de hoje...
Por tudo isso, nosso saudoso dr. Vasco não recebeu as devidas homenagens póstumas e muito menos em vida.
Os textos abaixo publicados fazem parte do início de um livro que estou escrevendo sobre ele. Como nossa convivência diária foi muito forte,estou escrevendo aos poucos, porque as lembranças mexem muito com meu lado emocional.
No entanto, esse livro só será publicado quando eu conseguir me mudar de Goiás...
Minha família é paulistana, eu tinha 15 anos quando meu pai veio transferido para cá. Ele faleceu, e minha mãe e eu ficamos aqui sozinhas, até hoje longe do restante da família...
Um dia, hei de sair desse antro de oligarquias e de coronelismo rançoso e demodè.
Um dia, esse livro será concluído e publicado, doa a quem doer.
Obrigada
Maria José Sá

LILIANE MANGINI disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
LILIANE MANGINI disse...

Maria, também fui aluna do Professor Vasco. Ah, como me lembro dele!!! A sala de aula permanecia em silêncio absoluto quando ele estava presente. Sou da turma de Biomedicina 89/1, ele foi meu professor de Biologia Molecular e Patologia. Na época não entendia muito o jeito rigoroso dele, talvez porque era muito jovem, gostaria de ter tido mais contato. Saudades daquela época!!