“Viverei hoje como se fosse o meu último dia. Como esse dia é muito precioso, tamparei seu conteúdo de vida para que nenhuma gota se derrame na areia.
Não desperdiçarei um só segundo pensando no passado nem tampouco no futuro porque não posso transportá-los para o meu dia de hoje. Este dia é tudo o que eu tenho e estas horas são agora a minha eternidade.
Este dia é uma outra oportunidade para que eu me torne a pessoa que poderei ser. Este será o meu dia de vencer! Não o desperdiçarei com sentimentos negativos: a dúvida, enterrarei sob a fé; o medo, derrotarei com confiança.
Viverei hoje como se fosse meu último dia. E se for, será meu maior monumento. Farei deste o melhor dia de minha vida. E, se não for, cairei de joelhos e agradecerei aos céus.” (MANDINO, Og; O maior vendedor do mundo – 5º pergaminho) O segundo livro indicado pelo professor Vasco, “O maior vendedor do mundo”, trazia o restante da receita do sucesso: humildade, caridade, otimismo, coração limpo, discrição, força interior e fé em Deus.
Após duas aulas de conduta profissional, ética e perseverança, finalmente começamos a jornada pelo maravilhoso universo da Biologia Molecular. Seguro e tranqüilo, o professor nos apresentou a beleza do mundo microscópico.
Cada aula era um show de conhecimento, uma novidade, mas também tinha um fundinho de tortura: durante as práticas no laboratório, enquanto manuseávamos o microscópio, o professor aproveitava para examinar nossas unhas, cabelos, pele e roupas. Se algum aluno ou aluna fosse flagrado com as unhas sujas e grandes, pele mal cuidada, cabelos desalinhados, ou roupas inadequadas e jalecos encardidos ou amassados, vinha um sermão interminável sobre a apresentação pessoal de um profissional da área de saúde... Ele também nos lembrava constantemente de que, “fomos feitos à imagem e semelhança de Deus. Portanto, não podíamos ser desleixados.”
No decorrer de todas as aulas, ele falava um número qualquer e, ao conferir o nome na lista de chamada, o aluno “sorteado” era sabatinado sobre o assunto da aula anterior, se respondesse corretamente, ganhava nota dez; caso não soubesse, ou a resposta fosse incompleta, ou até mesmo se demorasse pensando, a nota era zero. Essas provas orais aconteciam todas as aulas. Ninguém escapava, mas quem tirava zero tinha oportunidade de tirar dez nas provas seguintes. Para se recuperar, bastava estudar.
Hierarquia militar No sexto período, o professor Vasco lecionava Patologia. Uma matéria deliciosa, apesar da constante tensão dos alunos com as provas orais. Ainda me lembro das comparações com a hierarquia militar: “O monócito é o comando geral, é a célula grande que dá a ordem. Os linfócitos são os soldados de infantaria, aqueles que vão para a frente de batalha para enfrentar o inimigo, corpo-a-corpo.” Cada aula era um show, ricamente ilustrado com slides, e prendia completamente a atenção da turma.
Ainda no segundo período da Faculdade, tive o privilégio de ir trabalhar no Hospital Araújo Jorge da Associação de Combate ao Câncer em Goiás e, posteriormente, no Laboratório CAPC, à época propriedade do dr. Vasco e mais três médicos anátomo-patologistas. Ao todo, foram cinco anos de convivência diária, que se transformaram em uma amizade transparente, sincera, profunda. Nos momentos difíceis, dividíamos nossas angústias. Aos poucos, eu ia moldando minha identidade profissional, principalmente com os “puxões de orelha” necessários. Carinhosamente, ele me chamava de “Soldado MJ” e eu batia continência.
O professor realmente praticava os ensinamentos que nos passava, porém no ambiente de trabalho era informal, simpático, uma pessoa leve, que pagava pão-de-queijo para todo mundo e lanchava com os funcionários.
Curiosos, os colegas de faculdade sempre me perguntavam como era o temido professor fora da sala de aula. Muitos não acreditavam quando eu contava que ele era brincalhão, às vezes fazia trapalhadas e ria de si mesmo.
"Garantia" Ao final do expediente do CAPC, dr. Vasco sempre me dava carona até a Universidade. Certo dia, fomos lanchar numa recém-inaugurada lanchonete no setor Universitário e nos fartamos de pizza e suco de laranja. Na hora de pagar a conta, o chefe havia esquecido a carteira no laboratório (no setor Aeroporto), e eu só tinha vale-transporte. Sem graça, ele explicou a situação para o gerente, me deixou lá “como garantia” e foi buscar a carteira. Com o trânsito terrível, ele demorou mais de meia hora e eu já estava constrangida com os olhares de desconfiança do pessoal da lanchonete. Passado o vexame, demos boas gargalhadas.
Descobri que todas as provas eram orais somente porque o dr. Vasco trabalhava em vários lugares e não tinha tempo para corrigir provas escritas. Quanto ao rigor excessivo com os alunos, ele me respondia sorrindo: “tenho muitos defeitos, mas quero que meus alunos sejam perfeitos. Além do mais, se eu não for firme, sei que vocês não estudarão.”
Jornalismo Quando optei por seguir a carreira de jornalista, além de enfrentar a fúria da minha família (que ainda não me perdoou pela escolha...), ainda tive que enfrentar o chefe. Numa cena inesquecível, dr. Vasco tirou o cinto e, me mostrando o cinto dobrado, em atitude ameaçadora, trancou a porta da sala e ficou mais de duas horas esbravejando, tentando me convencer a não entrar para o mundo do Jornalismo. Foi a única vez que ele se zangou comigo.
Mais de uma década depois, bastante ferida pelos espinhos do Jornalismo, fui desabafar com o meu melhor amigo, no Laboratório Imunolab. Ele não hesitou em ressaltar que tinha me avisado que, por ser muito sensível, eu não suportaria a pressão do mundo competitivo e desleal da Comunicação, que vive em função do jogo do poder.
Despedida Após uma longa, sincera e dolorida conversa, ele me pediu que nunca parasse de estudar e trabalhar, e me lembrou de que para mim ainda havia tempo para uma nova mudança de rumos. Na ocasião, ele me explicou sua doença detalhadamente, me mostrou alguns exames que confirmavam quatro calcificações no cérebro, e disse que sabia que o tempo dele tinha se esgotado.
Nos despedimos com um abraço fraterno e, quando me virei para ir embora, ele ainda repetiu: “Não se esqueça: trabalhar e estudar, sempre. Além disso, o resto é ilusão”. Senti um aperto no coração, um mau presságio. E assim foi nosso último encontro. Eu não quis vê-lo na fase avançada da doença e nem fui ao funeral. Ele se foi no natal de 2005 e eu optei por guardar sua imagem cheio de vida.
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A foto acima foi tirada em 1988, de roupa branca, com 20 anos de idade, eu sequer imaginava que minha vida fosse tomar rumos tão diferentes. Na época, eu sonhava em me especializar em Imunohistoquímica ... Menos de dois anos depois, minha vida deu um giro de 180 graus, se pra melhor ou pior, não há como avaliar...